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A FORMA DA VIOLÊNCIA
por Marilena Chaui
LEIA PREFÁCIO DA FILÓSOFA À OBRA "VIDEOLOGIAS", QUE ESTÁ SENDO LANÇADA NESTA SEMANA E REÚNE ENSAIOS
DE EUGÊNIO BUCCI E MARIA RITA KEHL
Trabalhando com a polissemia de um neologismo -"videologia"- ,tomado tanto como referência à
obra de Barthes, "Mitologias", como com relação à palavra "ideologia",
este livro ["Videologias - Ensaios sobre
Televisão", editora Boitempo] reflete sobre os meios de comunicação de massa
(particularmente a televisão) enquanto
operação imaginária, na medida em que
a imagem é simultaneamente alicerce,
instrumento e resultado da operação midiática. Pensando menos na sociedade
contemporânea como sociedade de
massa ou de consumo e mais como sociedade do espetáculo, os autores enfatizam essa tríplice posição da imagem numa sociedade em que os seres somente
são ou vêm à existência se forem dados à
visibilidade imediata, ao ver (que, em latim, se diz com o verbo "vídeo", "videre"). Todavia não se trata de um ver
qualquer, e sim daquele que é instituído
pela mediação tecnológica, econômica e
política que define os meios de comunicação. Em outras palavras, os autores se
interessam pelos meios enquanto mediação que institui o espaço público na
sociedade contemporânea.
Isso significa, em primeiro lugar, que o
olhar instituído pela mídia nada tem em
comum com a experiência perceptiva do
corpo próprio, uma vez que os meios de
comunicação destroem nossos referenciais de espaço e tempo, constituintes da
percepção, e se instituem, a si mesmos,
como espaço e tempo -o espaço é o
"aqui" sem distâncias, sem horizontes e
sem fronteiras; o tempo é o "agora" sem
passado e sem futuro. Ou, como mostram os autores, a televisão se torna o lugar, um espaço ilocalizável que se põe a
si mesmo num tempo imensurável, definido pelo fluxo das imagens. A televisão
é o mundo. E esse mundo nada mais é senão a sociedade-espetáculo, entretecida
apenas no aparecimento e na presentificação incessante de imagens que a exibem ocultando-a de si mesma.
Se assim é, as análises de "Videologias"
são feitas sob uma perspectiva precisa,
qual seja, os processos de instituição mítica das significações, graças ao deslizamento contínuo dos significantes. A mídia seqüestra as significações estabelecidas, tanto cristalizando-as em alguns significantes fixos quanto dissolvendo-as
em significantes instáveis. Apanhando as
significações histórica e socialmente instituídas, ora pode fixá-las como bases de
um código de valores (bem e mal, belo e
feio, justo e injusto, possível e impossível) que é devolvido e imposto à sociedade por uma instância que parece transcendê-la; ora pode alterá-las segundo
critérios do mercado da moda, do mercado político, do mercado militar e outros. No primeiro caso, a fixação leva à
naturalização das significações; no segundo, à sua flutuação permanente.
Produzindo a adesão a todas elas, não
apesar, e sim graças a essa oscilação das
imagens entre o eterno e o efêmero, a mídia produz videologias, a forma contemporânea do mito. A operação mítica, no
caso da televisão brasileira, é realizada
pelo que Eugênio Bucci designa como
dueto entre fato e ficção, quando a realidade dos noticiários aparece como ficção, e a ficção das telenovelas aparece como realidade, pois ambos se inscrevem
no registro do entretenimento. Quando
bem-sucedida (e tem tido sucesso), a
operação mítica obtém o que Maria Rita
Kehl designa como passagem da produção da identificação à da identidade -a
tela da televisão não oferece modelos a
imitar, mas se oferece como espelho no
qual acreditamos estar refletida nossa
própria imagem.
Ora, isso significa também que a instituição dos espaços-tempos públicos pelos meios de comunicação, sobretudo
pela televisão, é um ato de poder. Não o
poder tal como estamos acostumados a
pensá-lo quando fazemos a crítica da mídia, isto é, como ação de agentes determinados que deliberam sobre seu próprio agir em vista de conseguir dominação. Mudando o registro costumeiro das
análises sobre a mídia, os autores nos fazem compreender que o poder midiático
é um "mecanismo de tomada de decisões que permitem ao modo de produção capitalista, transubstanciado em espetáculo, sua reprodução automática".
Em outras palavras, o sujeito do processo não são os proprietários dos meios
de comunicação nem os Estados nem
grupos e partidos políticos, mas simplesmente (e gigantescamente) o próprio capital. Dessa maneira, os autores se libertam e nos libertam de uma atitude maniqueísta e simplista sobre a forma, o conteúdo e o sentido do poder midiático.
Sem dúvida, não negligenciam o poder
econômico dos grupos proprietários
nem a tendência oligopólica desse poder
no Brasil assim como não negligenciam
o poder desses grupos para determinar
efeitos políticos (como, por exemplo, resultados eleitorais) ou para ocultar fatos
sociopolíticos (como, por exemplo, massacres e chacinas em larga escala). No entanto a profundidade da análise consiste
justamente em mostrar que essas ações
exibem poder, mas não o constituem,
pois sua constituição precisa ser procurada no modo de produção do capital.
Trata-se, pois, de decifrar o poder videológico. Para isso, colocando-se num
patamar de análise novo, os autores procurarão decifrar a imagem e o imaginário (produzido pelo fluxo das imagens),
tomando como referências conceituais
as análises de Freud e Marx sobre o fetichismo. Por que essa referência? Porque
os autores não se contentam em retomar
análises que salientam as operações midiáticas como ações que visam ao desejo,
mas buscam o modo de produção do
imaginário contemporâneo pela compreensão crítica da imagem enquanto
imagem, seja no nível do inconsciente
individual, seja no nível do inconsciente
social. Psicanaliticamente, o fetiche é um
objeto imaginário por meio do qual
ocultamos uma perda e uma falta intoleráveis -o fetiche é o objeto mágico de
satisfação do desejo pela denegação da
perda e da falta e por isso mesmo exprime a impossibilidade de lidar com a ausência e com a alteridade (ou a impossibilidade de passar da imagem ao símbolo). Marx, por sua vez, elaborou o conceito de fetichismo da mercadoria para descrever o processo social de inversão da
realidade social, isto é, o fato de que no
modo de produção capitalista, em lugar
das relações sociais serem relações entre
sujeitos mediadas pelas coisas, elas são
relações entre coisas mediadas pelos sujeitos. Ou, melhor, as mercadorias são fetiches porque parecem ter vida própria,
personificam-se, enquanto os indivíduos
que as produziram se tornam peças de
uma engrenagem produtiva, se coisificam e se relacionam entre si como mercadorias que produzem mercadorias.
Entretanto os autores dão um passo
importante ao introduzirem a diferença
histórica, ou seja, as análises de Freud e
de Marx se referiam a uma sociedade do
trabalho na qual o gozo e a satisfação deviam ser reprimidos para a manutenção da ordem social, mas se trata, agora,
de retomar o fetichismo numa sociedade
do consumo e do espetáculo na qual o
gozo e a satisfação se tornaram imperativos sociais e morais. É nesse novo tempo
histórico que os autores redefinem o fetiche e sua instituição videológica e podem nos oferecer uma compreensão inteiramente nova de duas questões ético-políticas cuja discussão tem sido sistematicamente simplificada: a da violência
e a da verdade/mentira.
Não queremos antecipar o conteúdo
dessas análises e privar o leitor do impacto que elas certamente terão sobre ele
quando, por exemplo, descobrir que a
publicidade não inclui, mas exclui, ou
que o obsceno nos "reality shows" não
está no voyeurismo do espectador, e sim
no exibicionismo dos participantes, ou
que uma ética da solidariedade só pode
supor-se realizando o bem porque tem
como pressuposto necessário o mal, isto
é, a desigualdade e injustiça sociais sem
as quais parece não haver apelo a ações
solidárias, as quais, enquanto imagens e,
portanto, espetáculo, possuem valor de
mercado e instituem a solidariedade no
espaço do marketing.
Marcada pela impossibilidade
de simbolização e ausência de pensamento, a imagem televisiva só é capaz de propor e provocar atos sem mediação
Atos sem mediação
Vamos, aqui,
apenas mencionar dois resultados de
grande envergadura, entre os muitos
conseguidos pelos autores e que nos permitiriam agregar um terceiro sentido ao
neologismo "videologia", tomando-o
como composição de "vídeo" e "logia",
isto é, "logos", termo grego que significa,
a um só tempo, palavra e pensamento.
Como Erwin Panofski, que inventou o
vocábulo "iconologia" para designar a
análise e interpretação da pintura, cremos que "videologia" também pode ser
entendida como análise e interpretação
do visível imaginário contemporâneo.
No ensaio sobre a relação necessária
entre imagem/imaginário e violência,
Maria Rita Kehl nos faz compreender
que a violência da televisão não se encontra nos assuntos ou conteúdos veiculados por ela, e sim na sua forma intrínseca, isto é, na imagem enquanto imagem, uma vez que esta é elaborada e
transmitida de maneira não só a substituir o real, mas sobretudo para oferecer
um suposto gozo imediato do telespectador e, com isso, impedir os processos
psíquicos e sociais de simbolização, sem
os quais o desejo não pode ser transfigurado e realizado e o pensamento não pode efetuar-se, isto é, a dúvida, a reflexão,
a crítica, o diálogo se encontram totalmente bloqueados. Paralisia do desejo
no narcisismo, impossibilidade de simbolização e ausência de pensamento, a
imagem televisiva, em sua imediateza
persuasiva e exclusiva, só é capaz de propor e provocar atos sem mediação e é
exatamente nisso que ela é violenta, e sua
violência transita livremente no interior
dos indivíduos e da sociedade.
Por sua vez, em seus vários ensaios, Eugênio Bucci ocupa-se dos efeitos do fetichismo ou do imaginário midiático sobre o espaço público. Suas análises recusam tanto a compreensão do fenômeno
pela oposição entre verdade e mentira
quanto pela ação deliberada das empresas de comunicação e enfatizam o vínculo entre fetiche (sedução, gozo narcisista), mercado (publicidade e consumo) e
privatização como expressão do desaparecimento do espaço público republicano e democrático.
Essa desaparição é, sem dúvida, mundial, mas no Brasil assume proporções
insuspeitadas por duas razões principais:
por um lado, porque a onipresença e
onisciência da televisão como mediação
necessária -ou o que Bucci denomina
"centralidade da TV" - foram fenômenos produzidos pela ditadura, com sua
política de integração e segurança nacionais ou de homogeneização ideológica
do país; por outro lado, porque ao contrário de outros países, em que a imprensa diária e a semanal e o rádio são tão ou
mais relevantes do que a televisão, no
Brasil a TV reina praticamente sozinha e
sem rivais. Eis porque, escreve Bucci, "o
Brasil se comunica pela televisão. O Brasil se conhece e se reconhece pela televisão e praticamente só pela televisão, que
reina absoluta sobre o público nacional,
muitas vezes superior aos outros veículos. (...) A TV dá a primeira e a última palavra e, mais do que isso, a primeira e a
última imagem sobre todos os assuntos".
Esse conhecimento/reconhecimento
instituído pela imagem do Brasil não
opera somente no sentido de apagar as
diferenças sociais e regionais reais ou reduzi-las a aspectos folclóricos, mas opera
no sentido de ocultar o país. Esse ocultamento se efetiva por duas vias preferenciais: pela omissão de fatos reais ou por
sua apresentação já interpretada, e pelo
dueto fato-ficção, ou seja, pela transformação do fato em fantasmagoria e da ficção em realidade cotidiana.
Ocultar-se a si mesma
A análise de
Bucci, porém, vai mais fundo e nos faz
compreender que é o fetichismo que torna possível e eficaz o ocultamento: a TV é
fetichista não só porque institui fetiches,
mas porque a operação central da TV é
ocultar-se a si mesma como veículo ou
meio de transmissão. Em outras palavras, seduzido, o espectador é arrastado
pela transparência do que lhe é enviado e
não se dá conta de que mantém uma relação determinada com o veículo, mas
acredita relacionar-se diretamente com
o mundo.
Sob o dueto fato-ficcção ou telejornalismo-telenovela sucumbe o espaço público republicano e democrático, isto é,
como já mostrara Maria Rita Kehl, a ausência de pensamento, de dúvida, reflexão, crítica e diálogo. Não só a esfera pública passa a ser o domínio das operações
do capital por meio das empresas de comunicação de massa como também, na
qualidade de público, os telespectadores
são platéia e não-cidadãos, isto é, definidos por direitos políticos, sociais, econômicos e culturais (como platéia, são consumidores, mas, uma vez que não são cidadãos, nem sequer os direitos do consumidor são respeitados. Donde, no final
do livro, a proposta política de definição
dos "direitos dos telespectadores").
Assim como Maria Rita Kehl desvenda
na estrutura da imagem a violência constitutiva do poder videológico, assim também Eugênio Bucci desvenda na estrutura da operação por transparência (instituinte do espaço-tempo e do mundo
imaginários) como ocultamento de si a
eficácia constitutiva desse poder.
Livro inovador e instigante, contra a
violência fetichista do imaginário, "Videologias" nos convida ao trabalho do
pensamento; contra a violência política
dos meios de comunicação, nos convida
à busca de uma cultura democrática.
Marilena Chaui é professora de filosofia política e
história da filosofia moderna na USP e autora de,
entre outros, "A Nervura do Real" (Cia. das Letras).
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