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O FILME "MAX", SEM PREVISÃO DE LANÇAMENTO NO BRASIL, APANHA HITLER NO INÍCIO DA JUVENTUDE, DIVIDIDO ENTRE A AMBIÇÃO ARTÍSTICA E A CARREIRA POLÍTICA
RETRATO DO DITADOR QUANDO JOVEM
Associated Press
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O ator John Cusack em cena do filme "Max" |
Demetrios Matheou
Richard Black
da "Sight and Sound"
Berlim. O ator John Cusack está parado na extremidade de um espaço subterrâneo cavernoso e
barulhento. Ele está cercado por pessoas que festejam, tietes do festival de cinema e uma equipe
de televisão à qual tenta dar uma entrevista. Veste um
luxuoso casaco longo e, como sempre, parece usar rímel. O espaço é uma galeria de arte no elegante bairro
de Mitte; a ocasião, uma festa para comemorar o novo
filme de Cusack, "Max" (2002), de Menno Meyjes, durante o Festival de Cinema de Berlim. É uma ocasião entediante. No entanto a escolha do local e da cidade e o
próprio fato de não haver arte exposta no espaço principal são muito apropriados para o lançamento desse filme em particular. Pois "Max" coloca em questão um "e
se?" irreal mas pungente: suponha que Adolf Hitler tivesse realizado sua ambição inicial de se tornar artista.
Pense no que teria sido poupado ao século 20.
É uma conjectura tão grandiosa que "Max" é assombrado por vários ecos de ressonância cultural. A produção do filme utiliza outro local tão cavernoso quanto o
da festa em Mitte: um enorme galpão ferroviário em
que o negociante de arte judeu Max Rothman exibe
pinturas expressionistas para vender para a burguesia
endinheirada. Esses quadros -supostamente de George Grosz, entre outros- parecem precoces para Munique em 1918, embora na época os artistas do período de
Weimar já estivessem trabalhando. Mais importante,
eles apertam o botão "Cabaré", por isso vislumbramos
imitações de Marlene Dietrich, Louise Brooks e Liza
Minnelli espreitando pelos cantos, com roupas no estilo
Brecht-Weill.
A idéia de exibir obras de arte num galpão de ferrovia
certamente também é anacrônica, embora, com o dadaísmo já em plena força, as tentativas de chocar fizessem parte do cenário artístico. O mais significativo nesse galpão, porém, é que ele é uma concepção teatral, um
teatro de sonhos rival dos Bierkeller onde Hitler eventualmente encontraria sua voz demagoga.
Pois nessa Munique o fermento da revolução está no
ar, tanto na política como na arte. Mas o que há de mais
revolucionário em "Max" é que o Hitler que encontramos aqui não é o louco furioso nem o super-homem
imperial a que nos habituaram milhares de imagens,
mas sim um pequeno nó de raiva expressiva que Rothman de alguma forma percebe que se transformará em
algo ou alguém monumental. A Segunda Guerra e o
Holocausto ainda não ocorreram -embora o fato de
os conhecermos de antemão projete uma sombra escura sobre todo o filme. Em vez do Führer, o que vemos
aqui se aproxima mais de um retrato humano de Hitler
antes de conquistar o poder do que já vimos em qualquer forma de arte. Interpretado por Noah Taylor, esse
Hitler é uma figura das menos interessantes: um ex-soldado feio e amargo, extremamente antipático.
Diante da enorme tarefa de retratar o personagem recente mais monstruoso da história, a estratégia redutora do filme faz sentido -especialmente se lembrarmos
que uma ampla tentativa cinematográfica de compreendê-lo como um fenômeno cultural, "Hitler"
(1977), de Hans Jurgen Syberberg, um filme alemão,
dura sete horas e nove minutos na versão completa.
Um grande número de mórbidos documentários de
TV é dedicado à Segunda Guerra, mas, assim como os
outros grandes tiranos do século 20 -Stálin, Mussolini
e Mao-, Hitlers fictícios são uma raridade; nos filmes
de ficção sobre os nazistas de que lembramos mais imediatamente, Hitler muitas vezes parece uma ausência
estrutural. Isso vale igualmente para a sátira contemporânea de Ernst Lubitsch sobre um grupo teatral que trabalha na Polônia ocupada -"Ser ou Não Ser" (1942)-
e para as lúgubres exibições nos anos 60 e 70 do "fascinante fascismo" (como o chamou a crítica Susan Sontag), como "Deuses Malditos" (1968), de Visconti, ou
"O Conformista" (1970) e "1900" (1976), de Bertolucci.
De fato, pode-se argumentar que o enfoque no trauma do Holocausto em filmes recentes e premiados, como "A Lista de Schindler" (1993), de Spielberg, e "O Pianista" (2002), de Polanski, tende a distanciar e despersonalizar os nazistas de uma maneira que os retratos de
indivíduos nazistas não conseguem, permitindo que os
vejamos como vilões "de cinema".
A falta de envolvimento do cinema de ficção com o
personagem Hitler é discrepante do fascínio público pelo líder nazista, que decorre por um lado do reconhecimento de sua importância histórica e, por outro, de
uma morbidez talvez mais sinistra. Como diz o historiador Ian Kershaw em sua excelente biografia "Hitler
1889-1936 - Hubris" [ed. Penguin]: "Certamente nenhum outro indivíduo marcou de maneira mais profunda [o século] que Adolf Hitler... Ele é um dos poucos
indivíduos do qual se pode dizer com absoluta certeza:
sem ele, o rumo da história teria sido diferente". Se se
procurar na internet sites com alguma referência a Hitler, encontrará o surpreendente número de 1,87 milhão -cerca de 240 mil a mais que Churchill e quase 1
milhão a mais que Stálin.
"Max" tenta, embora de modo fantasioso, preencher
esse vazio cinematográfico. O diretor e roteirista Menno Meyjes situa seu filme no período imediato do pós-Primeira Guerra, quando a Alemanha sofria as consequências do Tratado de Versalhes. Os aliados vitoriosos
sobrecarregavam o país com a odiada "cláusula de culpabilidade" e uma gigantesca conta de indenizações
que só exacerbou as condições anteriores de extrema
pobreza. Os soldados comuns do Exército alemão não
derrotado (como eles o consideravam), como Hitler,
muitas vezes voltavam literalmente para nada -sem
moradia, pouca alimentação e um país desprovido de
respeito próprio.
Culturalmente, porém, existe uma história potencialmente mais rica para contar: o panorama artístico de
vanguarda na Europa florescia, impulsionado pelos dadaístas, anarquistas da arte cujos feitos diversos, principalmente em Berlim, assumiam um viés abertamente
político, apoiando os esquerdistas que tentavam derrubar o governo. É o Hitler desse período divisor de águas
na história alemã que Meyjes mostra, por meio de uma
tensão projetada entre a bem-documentada ambição
de Hitler de ser um artista e sua política nascente.
O filme opõe dois indivíduos lutando pela alma do
soldado: um capitão do Exército, baseado no verdadeiro capitão Karl Mayr, que percebeu o talento do cabo
para discursos que agitavam as massas e ajudou a criar
o que Kershaw chama de "propagandista e demagogo
de cervejaria", que era o ditador embrionário; outro, o
negociante de arte moderna Max Rothman, que tenta
incentivar o candidato a artista, é fictício.
A fantasia é tanto atraente quanto absurda. É amplamente aceito que desde a juventude Hitler tinha visões
de si mesmo como artista, mas era uma ambição que
não combinava com seu talento ou dedicação. Ainda
rapaz ele foi recusado duas vezes pela Academia de Belas Artes de Viena. Vivendo como um virtual vagabundo pela cidade, limitava-se a pintar cartões-postais de
vistas locais (mais tarde referiu-se a si mesmo em "Mein
Kampf" como "um pintor de coisinhas") que vendia
nas ruas. Quando Hitler se mudou para Munique em
1913, com a nova ambição de ser arquiteto, no início
continuou se sustentando dessa maneira.
Em ambas as cidades -a Viena de Klimt e da Sezession, a Munique do expressionismo alemão (onde Kandinsky, Franz Marc e Paul Klee estavam entre os
principais nomes do movimento O Cavaleiro Azul)- a
vanguarda escapou a Hitler, pois seu gosto se situava
nas linhas românticas e sentimentais da pintura do século 19. Em 1918, estava não apenas metido em política,
mas provavelmente teria fugido à simples menção do
dadaísmo. Como o Hitler maduro de Noah Taylor declara no filme enquanto empurra uma série de quadros
inertes para seu patrão: "Não espere nada de abstrato".
A história torna ainda mais saboroso esse confronto
em "Max". Walter Benjamin observou que "o fascismo
foi a estetização da política". E, enquanto os propagandistas nazistas promoviam representações kitsch do
campesinato nórdico, soldados romanticizados e exagerados, os nus neoclássicos germânicos -todos voltados para a promoção do sonho ariano- também demonizavam a arte moderna.
A exposição do partido "Arte Degenerada" realizada
em Munique em 1937 e apresentando figuras como
Max Beckmann, Otto Dix, Max Ernst e Picasso pretendia ser uma clara mensagem do que se considerava inaceitável para o Reich. "O que vocês estão vendo aqui",
proclamou Adolf Zieglar, presidente da Câmara de Cultura do Reich, "são os produtos disformes da loucura,
impertinência e falta de talento... Eu precisaria de vários
trens de carga para limpar as galerias desse lixo".
Leve melancolia
Portanto, o personagem de Max
Rothman -um dadaísta nas horas vagas, além de negociante, interpretado por Cusack com a leve e envolvente melancolia habitual- expressa uma revolução
artística e cultural que não poderia ter alcançado o que
o filme sugere: a sedução de Hitler pelo expressionismo
alemão. Suas funções mais realistas são representar a
despreocupação dos judeus-alemães com o anti-semitismo e simbolizar o que o mundo perdeu culturalmente no Holocausto -embora o filme também se arrisque
a retratá-lo como uma espécie de mascate pelo modo
como vende sua arte.
Seu papel também é o de polarizar a luta íntima de Hitler entre a arte e a política. E em "Max" essa luta, por
mais que seja exagerada, consegue algo bastante arriscado: torna Hitler um indivíduo compreensível, de escala humana. O retrato de Hitler feito por Taylor contém muitos aspectos conhecidos: o cinismo político e a
apresentação calculada do anti-semitismo como uma
questão de estado ("A condição judaica", ele disse a
seus companheiros soldados, "deveria ficar no domínio
do governo: como a saúde... ou o esgoto"); a amargura,
o ego desmedido, a vaidade, o fetichismo da saúde.
Mais que tudo, Taylor mostra o que o capitão Karl Mayr
certa vez descreveu: "Hitler era como um cão vadio à
procura de um dono... pronto para colocar seu destino
nas mãos de qualquer um que lhe mostrasse bondade".
Andres Hemori, o produtor do filme, diz que decidiu
realizar o projeto quando "começou a ver que, para
compreender o monstro em Hitler, é preciso aceitar que
ele tinha uma face humana -é preciso ver de onde
veio, um joão-ninguém da Áustria, um homem que fracassou na arte, e como se transformou no homem mais
temido do século 20". É claro que qualquer psicólogo
digno de seu divã poderia ter um dia, em campo freudiano, especulando o que poderia constituir a "face humana" de Hitler, mas a análise em si nada vale sem o
contexto histórico. Meyjes oferece isso por meio do
contraste entre a pobreza (e consequente raiva) da Munique no pós-guerra e o luxo em que Rothman vive.
Isso dá ao espectador a perspectiva desconfortável
dos soldados sem emprego que na amargura e no ressentimento se prendem a suas armas e ao anti-semitismo que fermenta nas ruas, enquanto os alemães buscavam bodes expiatórios para suas dificuldades.
Infelizmente, a eficácia dessa abordagem "moralizante" é reduzida pelo tom errático do roteiro e o recurso
esporádico a apresentar Hitler como um grotesco de
comédia. É quase como se, no próprio ato de humanizar o mito, os realizadores do filme estivessem admitindo a impossibilidade da tarefa. Pois o que essa ocasional
caricatura da personalidade de Hitler -sua terrível falta de habilidades sociais, sua falta de cultura típica da
classe baixa- nos lembra principalmente é a reação
inicial da propaganda aliada: a ridicularização seria a
melhor arma contra o fanatismo. E é claro que todo o
mórbido fascínio da televisão por Hitler não é realmente provocado pelo desejo de descobrir o ser humano,
por mais que grande parte da cultura da terapia atual
possa nos incentivar a isso. Somente o mito do monstro
poderia inspirar tão repetidas renarrativas, e é isso que a
maioria dos retratos do ditador tendeu a informar.
Caricatura declarada
O filme mais famoso sobre
Hitler é provavelmente "O Grande Ditador" (1940), de
Charles Chaplin, que não se preocupava com a face humana, mas era uma caricatura declarada. Como sugeriu
o recente documentário "O Vagabundo e o Ditador", da
BBC4 Timewatch, parecia predestinado que Chaplin interpretaria Hitler: ambos nasceram na mesma semana;
ambos eram estrangeiros; Chaplin fez nome como O
Vagabundo e Hitler era um vagabundo; poderíamos até
dizer que Chaplin foi o homem mais amado de seu tempo, e, Hitler, o mais odiado. Um artigo anônimo de 1939
na "Spectator" traçou essas comparações em detalhe,
argumentando que "cada qual à sua maneira expressou
as idéias, os sentimentos e as aspirações de milhões de
cidadãos em dificuldades".
Chaplin certamente foi corajoso ao realizar o filme,
diante do abjeto anti-semitismo em seu país adotivo, do
lobby de produtores judeus de Hollywood, que temiam
as consequências para os judeus-alemães, e das ameaças antecipadas -incluindo, inicialmente, na Grã-Bretanha- de proibir o filme. Apesar disso tudo, ele começou a filmar seis dias após o início da guerra na Europa e
lançou o filme em 1940. Em muitos aspectos, porém, foi
mais uma vitória política que artística. Como o próprio
Chaplin admitiu: "Se eu tivesse sabido dos verdadeiros
horrores dos campos de concentração alemães, não poderia ter feito "O Grande Ditador", não poderia ter zombado da insanidade homicida dos nazistas".
O comentário de Chaplin expõe o problema de zombar de Hitler: se você recorre ao ridículo, esquiva-se do horror dos fatos de
uma maneira que o público não pode escapar. E em
"Max" a sátira intermitente de Hitler como arengador de bar torna o futuro ditador de Taylor uma
figura tão segura e distante de se contemplar quanto a de Chaplin. Nesse
sentido o filme poderia ficar confortavelmente junto dos noticiários filmados britânicos da época,
que mostram o famoso
trejeito de Hitler após a
rendição francesa em
1940 em repetição acelerada.
Ao acenar com a possibilidade de um Hitler "natural" somente para
transformá-lo em bufão,
"Max" não se decide. A
abordagem realmente reveladora, e até de vanguarda -diante dos saques à arte modernista
feitos pelo filme para facilitar as referências culturais-,
teria sido fazer um filme totalmente do ponto de vista
de um soldado faminto, anti-semita, desmobilizado, o
que poderia ter sido impossível obter sem também fornecer uma aparente justificativa para o nascimento do
fascismo. Mas "Max" apenas indica essa direção. Portanto, parece muito apropriado que seja a imagem do
próprio Max Rothman, o carismático negociante de arte interpretado pelo carismático astro do cinema, que
afinal eclipsa o homenzinho de Noah Taylor.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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