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"A Ladeira da Memória", de José Geraldo Vieira, e "O Tronco", de Bernardo Élis, põem em contraste a alta burguesia cosmopolita e a sociedade feudal sertaneja
Estratégias ficcionais para dois brasis
Nelson de Oliveira
especial para a Folha
O do Sudeste e o do Centro-Oeste. Dois romances, duas cosmovisões. O primeiro, "A Ladeira da Memória", de José Geraldo Vieira, publicado em 1950 e agora
na quarta edição (a primeira pela editora
Planeta). O segundo, "O Tronco", de
Bernardo Élis, lançado em 1956, já na nona edição. De um lado a alta burguesia
metropolitana e cosmopolita, do outro
as várias camadas da sociedade feudal
sertaneja, dominada pelo coronel e seus
jagunços. Ocupando os extremos de
uma linha imaginária, os dois romances
parecem querer se completar. O adágio
sinuoso e levemente afetado do primeiro, feito de ruminações estéticas e preciosismos linguísticos, sobrepõe-se à marcha de faroeste do segundo, executada
pela saraivada de balas de tocaias, assassinatos e cercos sangrentos.
A herança refinada da belle époque e
da art nouveau corria nas veias de José
Geraldo Vieira. Nascido nos Açores, em
1897, veio com poucos meses para o Brasil. Formou-se em medicina -na sua tese acadêmica de formatura, intitulada "O
Instinto Sexual", já apareciam as idéias
de Freud- e foi pioneiro no uso do raio
X entre nós. Morou na França e na Alemanha, mas, em 1941, motivado por crises diversas, exilou-se na provinciana
Marília, no interior de São Paulo.
Durante boa parte da vida dividiu-se
entre a medicina, o ensino e a prática da
literatura, a crítica de arte e a tradução,
tendo vertido para o português obras de
Joyce, Dostoiévski, Stendhal, Pirandello,
Steinbeck, Mark Twain, entre outros. Fazia parte de seu procedimento ficcional
lançar mão de fatos autobiográficos na
composição das personagens. Tanto que
Jorge, o protagonista de "A Ladeira da
Memória", também é médico, romancista e tradutor.
Coloquialismo
Já nas veias de Bernardo Élis rolava a poeira do cerrado e o
coloquialismo do povo. Nascido em Corumbá de Goiás (GO), em 1915, foi advogado e ativo agitador cultural, além de o
primeiro escritor goiano na Academia
Brasileira de Letras. Para Francisco de
Assis Barbosa, que assina o prefácio de
"O Tronco", Bernardo Élis, com seu livro
de estréia, "Ermos e Gerais", de 1944, foi
o responsável por um novo ciclo da ficção brasileira: o do sertanismo goiano-mineiro. Graças a Élis e a autores que depois vieram engrossar esse caldo, como
Guimarães Rosa, Mário Palmério e José
J. Veiga, a literatura do Centro-Oeste
passou a competir em pé de igualdade
com a do Nordeste.
Para a elaboração do romance que o
consagrou, também Bernardo Élis foi
buscar material na realidade: os fatos
principais da sua narrativa aconteceram
em Goiás, nos idos de 1917 e 1918.
De um lado a ladeira das lembranças,
do outro a ferramenta de tortura. A trama dos dois romances é simples, quase
retilínea não fosse a intercalação de recordações e divagações no fluxo linear de
ambos. Aqui terminam as semelhanças.
A representação da passagem do tempo difere de maneira curiosa, parece invertida: é lenta no romance metropolitano e rápida no romance sertanejo. Na
primeira parte de "A Ladeira da Memória" o divertido desembargador Rangel,
tio de Jorge, conta-lhe a forte experiência
que foi retornar décadas depois ao sobrado do sogro, agora transformado em
cortiço. A casa situava-se justamente na
ladeira da Memória, em São Paulo. Esse
retorno converteu-se para Jorge no símbolo do reencontro com o passado e na
possibilidade de autopacificação.
Prosa intimista
O romance é a via-crúcis milimetricamente anotada de um
homem aniquilado pela morte da mulher amada, Renata, vítima de tuberculose. Tudo é movimento, nada nem ninguém permanece muito tempo no mesmo lugar, porém trata-se de movimento
em câmera lenta. O tempo presente, que
não acaba nunca, é o da viagem à fazenda Camapuã, local paradisíaco onde os
amantes passaram dias intensos. Esses
dias, contemporâneos aos da Segunda
Guerra Mundial, terminaram com a descoberta acidental da doença de Renata.
Para Jorge, a viagem a Camapuã é de urgente reconciliação com o passado, porque, transcorridos muitos anos, o hotel
fazenda já não existe mais.
A prosa é intimista, acompanha o vaivém do discurso interior. Mas não é só
isso. O narrador de José Geraldo Vieira
joga o tempo todo com o interno e o externo, dedica-se à paisagem abstrata do
espírito sem abrir mão do registro realista da paisagem concreta. Por isso [o crítico] Alfredo Bosi observou, décadas atrás,
que a posição desse autor na literatura
brasileira era marginal. Apesar de certo
existencialismo, presente em romances
como "A Quadragésima Porta", de 1943,
"O Albatroz", de 1952, e neste "A Ladeira
da Memória", situá-lo entre Lúcio Cardoso e Cornélio Pena seria um erro. Mais
proveitoso é simplesmente opô-lo aos
regionalistas, como outro caminho possível para a prosa urbana.
Batalha coletiva
Se até aqui tivemos a pacificação íntima, a partir de agora prevalecerá a batalha coletiva. Outra é
a dinâmica do tempo no sertão de Goiás,
onde se passa a trama de "O Tronco". Na
vila São José do Duro, governada pela família Melo, os fatos acontecem à velocidade de bala. O romance de Bernardo
Élis -filmado por João Batista de Andrade em 1999, com Antônio Fagundes e
Letícia Sabatella- é seco, crispado, cheira a pólvora. A natureza épica da narrativa não está só no gênero literário: sendo
o romance o épico contemporâneo.
Está principalmente no grande número de protagonistas e coadjuvantes reunidos pelo autor para narrar o confronto
entre as tropas do governo e os jagunços
do coronel Pedro Melo. Entre os dois fogos está Vicente Lemos, sobrinho de Pedro Melo mas também funcionário do
governo: coletor de impostos enviado à
vila do Duro para pôr fim às arbitrariedades. Porém tão arbitrários quanto o
coronel, que acaba assassinado, são os
soldados sob as ordens do incompetente
juiz Carvalho. Uma vez iniciados os
combates, a selvageria passa a prevalecer
dos dois lados. Comandados por Artur
Melo, filho de Pedro, a horda de jagunços cerca a vila. Por seu turno, os soldados aprisionam os membros da família
Melo ao tronco e, quando a guerra parece perdida, fuzilam todos -esse o ponto
alto do livro, apresentado de maneira hiper-realista, com a precisão de um estrategista do suspense.
A viagem ao passado, de Bernardo Élis,
ecoa no extremo oposto da viagem de José Geraldo Vieira, e ambas se completam
na ficção. Dois romances, duas crises
brasileiras: a do indivíduo culto e a da coletividade bestializada.
Nelson de Oliveira é escritor, autor de, entre outros, "O Filho do Crucificado" (Ateliê Editorial) e "A
Maldição do Macho" (ed. Record).
A Ladeira da Memória
352 págs., R$ 42,00
de José Geraldo Vieira. Ed. Planeta (r. Bernardino
de Campos, 318, sala 53, CEP 04620-001, SP, tel.
0/xx/11/ 5543-7899).
O Tronco
276 págs., R$ 30,00
de Bernardo Élis. Ed. José Olympio (r. Argentina,
171, 1º andar, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ,
tel. 0/ xx/ 21/ 2585-2060).
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