Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
De perto, ninguém é normal
EM ENTREVISTA À FOLHA, ADAM PHILLIPS ATACA A GLAMOURIZAÇÃO DA LOUCURA E SUA ASSOCIAÇÃO COM A ARTE E DIZ QUE AS PESSOAS PRECISAM RECONHECER QUE NÃO É POSSÍVEL SER FELIZ O TEMPO TODO
Sean Ellis/Getty Images
|
|
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Em um mundo onde o
verso "de perto, ninguém é normal" é entoado cotidianamente, a busca pela sanidade mental soa como inútil.
Mas o psicanalista britânico
Adam Phillips defende essa
"ficção que mantém nossas expectativas".
O autor de "Louco para Ser
Normal" (ed. Zahar, trad. Maria Luiza X. de A. Borges, 160
págs., R$ 34,90), ataca a glamourização da loucura, mas faz
uma concessão: a cultura do
"muito louco" teve o mérito de
quebrar preconceitos contra os
alienados, facilitando a discussão pragmática da questão.
Para Phillips, que coordenou
a recente edição das obras de
Freud pela editora Penguin, o
que se deve buscar não é a completa ausência de problemas,
mas uma forma de lidar com
eles -e isso inclui perceber outras idéias às vezes esquecidas,
como a de que não podemos
ser felizes o tempo todo.
Leia abaixo trechos da entrevista, concedida à Folha por telefone, do Reino Unido.
FOLHA - O que o levou a escrever
"Louco para Ser Normal"?
ADAM PHILLIPS - Eu o escrevi por
uma razão simples. Sanidade é
um assunto pelo qual a maioria
das pessoas não se interessa.
Contudo há um grupo muito
interessado nela: as pessoas
que foram loucas ou tiveram
parentes loucos. Para os demais, sanidade é enfadonha;
para esses, é um tema crucial.
Outra coisa que me interessou foi o fato de que, na Inglaterra, o movimento antipsiquiátrico -pessoas como R.D. Laing e David Cooper- esmoreceu muito rapidamente.
Quando estudei, 30, 25 anos
atrás, essas pessoas eram interessantes, iluminadoras. Dez
anos anos depois, não se falava
mais nelas. E achei que tinham
coisas interessantes a dizer.
Portanto foi uma combinação, na medida em que a idéia
de sanidade ainda pode ser importante, mas o significado da
palavra está morrendo.
FOLHA - Loucura está na moda?
PHILLIPS - Não. Foi moda, mas
foi má idéia fazer dela uma moda. O problema foi que, para as
pessoas levarem a insanidade a
sério, ela teve de ser glamourizada. Foi transformada numa
aventura.
Atualmente, para a maioria, é
o oposto: miséria profunda, beco sem saída, sem nada de engraçado.
As pessoas que a tornaram
moda foram responsáveis por
duas coisas importantes. Os
chamados "loucos" passaram a
ser pessoas a ouvirmos, com
coisas importantes a dizer
-não são apenas gente que assusta. Outra coisa: pessoas que
parecem ser normais podem
ser mais loucas que os loucos.
FOLHA - Sanidade é um mito?
PHILLIPS - Não um mito, mas
uma ficção que mantém nossas
expectativas. É uma história ou
descrição de estados mentais e
modos de ser dos quais podemos ser capazes. É um estado
da mente, por exemplo, em que
as pessoas não perturbam demasiado umas às outras.
FOLHA - Há uma tradição que trata
artistas como "gênios loucos". Isso
faz sentido?
PHILLIPS - Houve a idéia romântica segundo a qual, para ser artista, é preciso ser louco -o que
não me parece verdade. O que é
verdade é que algumas pessoas
que foram artistas foram também pessoas perturbadas e, a
partir de seus distúrbios, criaram arte.
Assim, uma das razões para a
glamourização da loucura é a
associação com os artistas
-"deve ser uma coisa boa, já
que tantos artistas são bons".
Mas muito da loucura não é
criativa, e sim anticriativa.
FOLHA - Pessoas sãs podem ser "legais"? Procurar o equilíbrio é o oposto de ser interessante?
PHILLIPS - Busquei, no livro, investigar se há uma versão
atraente da sanidade -talvez
não haja. Mas é possível que
ainda não a tenhamos criado,
pois a sanidade não é intrinsecamente sem graça.
Mas também acho que precisamos deixar de lado a idéia de
"equilíbrio". Sanidade tem
muito mais a ver com a capacidade de conter conflitos do que
resolvê-los.
FOLHA - Por que devemos, como o
sr. diz no livro, nos concentrar na sanidade, e não na doença? Afinal, a
sanidade é "invisível", é mais difícil
defini-la...
PHILLIPS - Entendo isso, mas
quis mostrar que o problema da
sanidade é ser invisível e que é o
tipo de coisa dado como certo.
Precisamos descobrir o que
acontece quando articulamos
nossas idéias de sanidade. Podemos precisar fazer isso para
encontrar novas fontes de esperança.
FOLHA - Conhece "Shyness" [Tmidez], de Christopher Lane? Ele diz
que a indústria farmacêutica cria
drogas para situações que não precisam de cura -como, segundo ele, a
timidez. O sr. concorda?
PHILLIPS - Conheço e concordo.
A indústria farmacêutica tem
sido um escândalo. Tem explorado as pessoas. Suas soluções
são totalmente falsas. As pessoas deveriam ter muito cuidado com a cultura da droga como
solução para as dificuldades de
estar vivo.
FOLHA - Concorda que o DSM [manual de classificação de doenças
mentais americano, referência
mundial] abandonou a teoria freudiana em favor da bioquímica?
PHILLIPS - Não o tenho estudado, mas parece que todo o etos
cultural tem se movido em direção à tecnologia das drogas
em detrimento das curas pela
fala ("talking cures").
De muitas formas, isso pode
ser algo necessário, para que,
com o tempo, a cultura da droga mostre que falhou, de modo
a voltarmos à curas pela fala. O
que a psicanálise tem a oferecer
é a idéia de que não podemos
ser curados... Não se trata disso.
FOLHA - De que se trata?
PHILLIPS - De duas coisas: ser
capaz de se atrever a encontrar
maneiras de conviver e transformar a si próprio. É ser capaz
de reconhecer o fato de que
-para dizer cruamente- não
podemos ser felizes o tempo todo. Qualquer um que esteja
completamente desperto sabe
que a vida é extremamente difícil. Há uma frase em "Fim de
Partida" [ed. Cosac Naify], de
Samuel Beckett: "Você está na
Terra; não há cura para isso".
FOLHA - E tentamos conversar para
aprender o que fazer em seguida?
PHILLIPS - Sim, ou aprender os
limites do que podemos fazer.
A psicanálise mostra a você as
coisas que não dá para mudar a
seu respeito.
FOLHA - Como traçamos os limites
do normal? A timidez não é normal,
por exemplo?
PHILLIPS - Deveríamos esquecer
se as coisas são normais ou não
e começar a pensar em quais
são seus propósitos. Qual é o
propósito da timidez para um
indivíduo? Não perguntaríamos se é normal, se precisa ser
curada, mas, sim: se tal pessoa é
tímida, como ela está lidando
com essa característica?
FOLHA - Seria um ponto de vista
funcional?
PHILLIPS - Sim. Eu chamaria de
visão psicanalítica pragmática.
FOLHA - Sanidade necessariamente se opõe ao hedonismo dos tempos atuais?
PHILLIPS - Como digo no capítulo "São Hoje", muito do hedonismo de hoje é uma forma de
desespero, de desilusão.
FOLHA - No fim do livro, o sr. trata
do uso de palavras como "tentação"
e "força de vontade". O que pensa
sobre a publicidade usar palavras
como "tentação" com o fim de vender produtos?
PHILLIPS - Não gosto disso. Mas
a educação precisa acompanhar o que acontece com a cultura. As pessoas deveriam
aprender na escola como ler
anúncios.
FOLHA - Tivemos, por exemplo, picolés batizados com os nomes dos
pecados capitais.
PHILLIPS - Podemos pensar no
que há de maravilhoso na inventividade disso tudo, mas
também há a falta de objetivo.
Não precisamos de sete sabores de picolé, por exemplo. Há
algo nesse excesso que é uma
forma de lidar com um sentimento de empobrecimento que
na verdade muitos têm.
FOLHA - Ainda sobre as formas de
atender às necessidade psicológicas
das pessoas, David Levy, em "Love
and Sex with Robots" [Amor e Sexo
com Robôs], diz que pessoas com dificuldades de sociabilidade poderão
em breve comprar robôs para resolver seus problemas. Esse é um modo
correto de procurar a sanidade?
PHILLIPS - É ridículo. Absolutamente não é o que interessa, é
mais problema do que solução.
A questão real é: como as pessoas se tornaram alienadas dos
únicos recursos verdadeiros de
que dispõem, isto é, um ao outro? Sociabilidade é a característica humana fundamental.
FOLHA - Ele diria que os robôs poderão conversar com as pessoas, logo esse problema estaria resolvido.
PHILLIPS - Há uma resposta
pragmática para isso: robôs são
bons para quem gosta de robôs.
Nada contra gostar de robôs;
tenho objeção à idéia de que isso seria uma solução para todo
mundo.
FOLHA - Como identificar a tentativa de sanidade que "aprisiona" e diferenciá-la daquela que liberta?
PHILLIPS - A primeira coisa é arriscar. Não podemos saber de
antemão qual será. Mas sabemos, sim, se estamos sendo
complacentes, quando fazemos
algo porque sentimos que deveríamos, ao invés de ser nosso
desejo genuíno.
Sanidade, se é que vale alguma coisa, será algo na direção
das coisas em que o indivíduo
acredita realmente, nas quais
está seu coração.
FOLHA - Mas alguém poderia dizer
"estou bem com esse sentimento,
quero permanecer assim, mesmo
que me chamem de psicopata".
PHILLIPS - Algo é bom desde que
não prejudique outras pessoas.
FOLHA - A questão é política?
PHILLIPS - Certo.
Texto Anterior: Dez + Próximo Texto: Que vergonha... Índice
|