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Que vergonha...
CLINICALIZAÇÃO DE SENTIMENTOS COMO A TIMIDEZ BENEFICIA APENAS A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA, DIZ CHRISTOPHER LANE EM LIVRO LANÇADO NOS EUA; PARA ELE, CONSUMISMO E DESCRENÇA TAMBÉM CORREM O RISCO DE SEREM VISTOS COMO DOENÇAS
DA REDAÇÃO
Pensar antes de falar
tornou-se coisa do
século 19. A pressão
por agilidade que a
competitividade capitalista imprime sobre o homem no trabalho -e, por conseqüência, em todas as esferas
de sua vida social- gerou novos conceitos de normalidade,
sob os quais a timidez e a introspecção não têm lugar.
Para a psiquiatria contemporânea, trata-se de transtornos
mentais.
Isso é o que defende o professor de literatura na Universidade Northwestern (EUA)
Christopher Lane. Para ele o
abandono da teoria freudiana,
em meados do século 20, e o
desenvolvimento do mercado
de antidepressivos fizeram
comportamentos até então vistos como comuns serem tratados como transtornos.
Acostumamo-nos à idéia de
que ninguém é normal, mas
que medicamentos podem nos
levar à sanidade.
Lane, que estudou comparativamente a psicologia contida
na literatura vitoriana e a ciência contemporânea em livros
como "Hatred and Civility"
(Ódio e Civilidade) e "The Burdens of Intimacy" (Fardos da
Intimidade), concentrou-se na
evolução mais recente da classificação das doenças mentais
para escrever seu novo livro,
"Shyness" (Timidez, Yale University Press, 272 págs., US$
27,50, R$ 45).
Ele analisa o desenvolvimento do DSM, sigla para "Manual
Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais", classificação norte-americana usada
como referência internacional
para as ciências médicas. Lá, timidez é o "transtorno de ansiedade". Publicado desde 1952, o
DSM já teve quatro versões,
com cada vez mais categorias.
Para Lane, a versão de número cinco deve conter doenças
novas, como "consumismo excessivo", o que representa um
risco em sociedades marcadas
pela automedicação e, segundo
ele, pelo pacto entre cientistas
e indústria farmacêutica.
"Nos últimos anos, pesquisadores chegaram a se recusar a
publicar pesquisas porque tinham resultados negativos para a indústria. É um sério conflito de interesses."
(EGN)
FOLHA - Como define a timidez?
CHRISTOPHER LANE - Eu a definiria como uma forma de consciência de si, às vezes excessiva,
que pode resultar em hesitação,
atitude estranha e embaraço. É
um traço psicológico bem difundido, existindo em cerca de
50% da população. Não é um
transtorno psiquiátrico.
A timidez tende a variar
enormemente de acordo com o
temperamento, a idade e a situação -pessoas gregárias podem ficar tímidas no primeiro
encontro com estranhos, e
crianças e adolescentes podem
se tornar tímidas em idades de
mais autoconsciência.
FOLHA - Resumindo a tese de seu
livro: os psiquiatras abandonaram
Freud e tomaram nada mais que o
DSM em seu lugar para explicar as
doenças mentais?
LANE - É algo nesse sentido.
Tento contar um pouco a história da ansiedade e como pensamos nela.
Até 1980, o DSM usava linguagem psicanalítica sobre ansiedade. Usava-se a expressão
"neurose de ansiedade". Os
americanos estavam insatisfeitos com o uso da linguagem psicanalítica, apesar de ela continuar em uso na Europa e em
países como Brasil e Argentina.
Houve nos EUA um guinada
em direção à biomedicina e à
neuropsiquiatria, portanto tentou-se definir ansiedade em
termos puramente biológicos.
É claro que há componentes
biológicos: palpitação, suor nas
mãos, falta de ar. Descrevo a
saída da abordagem psicológica
em favor da biomédica, o que
levou à conseqüência de que a
solução passou a ser o remédio,
ao invés de alguma mudança de
consciência ou percepção.
Hoje temos muitas indicações sobre os efeitos colaterais
e os problemas quando alguém
tenta diminuir a dose, como
mudanças súbitas de humor ou
pensamento suicida.
Quando Peter Kramer escreveu "Ouvindo o Prozac" [ed.
Record], ele pensava nas transformações na sociedade de
uma maneira totalmente benigna -escreveu antes de muitas descobertas negativas sobre
essa droga.
Hoje, escritores e cineastas
são mais conscientes dos riscos
das drogas, de que pessoas podem considerar, como parte de
suas identidades, tais doenças e
as drogas a elas associadas.
FOLHA - Mas na cultura pop persistem piadas ingênuas do tipo "está
na hora de tomar seu Prozac"...
LANE - É porque a indústria foi
muito eficiente em limitar a
publicidade dos efeitos colaterais dessas drogas. Como são
elas que bancam a maioria das
pesquisas, são brilhantes em
ocultar resultados.
As pessoas acham que vão resolver com drogas problemas
que, em 80% dos casos, o placebo resolve com a mesma eficácia. E as drogas têm efeitos colaterais.
FOLHA - Essa atitude do consumidor reflete a mudança cultural que
recomenda a postura agressiva do
mundo dos negócios?
LANE - É a pressão para ser extrovertido. Há menos ênfase
em introspecção, reflexão, escutar e absorver informações.
Como resultado, a idéia de
"normal" mudou muito e se estreitou demais. O ideal de extroversão torna-se uma exigência. E quem não é extrovertido se sente estranho, carente de alguma cura. A indústria deveria aliviar o sofrimento, mas gera um novo sofrer.
FOLHA - O sr. conta a história de
sua mãe, que, quando criança, imitava um cavalo quando alguém lhe
dirigia a palavra. E escreve que seus
avós, como muitos pais fariam, esperaram "pacientemente" que ela
aprendesse a se relacionar. Vivemos
uma cultura da impaciência?
LANE - Sim. Nossa expectativa
sobre outras pessoas e sobre o
que a vida oferece se apressou,
Há pressão para competir e
produzir, e isso tem alto custo
em instabilidade para as pessoas. Por isso, não digo que a
ansiedade seja um mito.
FOLHA - A depressão recebeu por
parte da indústria o mesmo tratamento que a ansiedade?
LANE - A depressão tem uma
história mais longa, mas recebeu um tratamento semelhante, pois a psicologia ficou de lado em favor da questão de
quantidade de substâncias no
organismo.
FOLHA - E como a mudança cultural afetou o tratamento dado à depressão?
LANE - Há livros muito bons,
como "The Loss of Sadness" [A
Perda da Tristeza, de Allan V.
Horwitz e Jerome C. Wakefield], que documentam como o
DSM simplificou demais a depressão, especialmente o transtorno bipolar. A publicidade
transformou "bipolar" em um
termo do dia-a-dia.
Os psiquiatras têm uma concepção estreita de normalidade, portanto criam novas doenças, como aquela para quem
briga no trânsito, por exemplo
[distúrbio de explosão intermitente]. Não digo que seja normal, mas daí a criarem um
transtorno específico mostra
aquilo que eles aceitam como
emoções humanas.
FOLHA - O sr. estudou em "Ódio e
Civilidade" o comportamento anti-social. A misantropia virou doença?
LANE - É uma ação política
classificá-la como doença. No
século 19, os misantropos eram
valorizados por serem pessoas
críticas da sociedade.
FOLHA - Que está estudando no
momento?
LANE - Estudando "passive-aggressive disorder" [transtorno
passivo-agressivo].
É interessante notar que a
linguagem usada no DSM de
1952 vem do jargão militar, de
memorandos da Segunda
Guerra. Médicos estavam preocupados porque alguns soldados não seguiam ordens, chamando isso de comportamento
passivo-agressivo.
Esses dados foram trabalhados e foi criado o transtorno de
personalidade com esse nome.
Em 1980, esse rótulo foi usado
para descrever sintomas nestes
termos: "Pessoas que têm preguiça, que não querem fazer
compras ou lavar a roupa". É
uma transformação incrível.
Estou também escrevendo
sobre a história da descrença,
chamada "Failing Gods" [Deuses que Falham].
FOLHA - A descrença logo vai virar
doença?
LANE - Espero que não, é um fenômeno extremamente útil.
Mas há grande chance de que o
consumismo ou a descrença logo sejam rotulados como transtornos mentais, o que seria
alarmante.
A dúvida é um estado da
mente que seria bom reviver.
No século 19, os vitorianos escreviam muito sobre a dúvida:
religiosa, científica, social, filosófica, legal. Hoje há a necessidade de revivê-la.
Podemos conceber o fundamentalismo como o pensamento que não admite dúvida,
o que é perigoso porque o mundo é cheio de incerteza. Não
aceitá-la produz comportamentos extremos, como as pessoas não mais tolerarem umas
às outras.
É um problema generalizado
-veja, por exemplo, o fundamentalismo cristão nos EUA.
FOLHA - As crianças precisam da timidez assim como da dúvida?
LANE - Não digo que precisam,
mas não devem se sentir doentes por a sentirem. As pessoas
têm excentricidades, isso é parte da humanidade. As pessoas
são mais felizes quando podem se expressar como são. Um psiquiatra que não tolera as diferenças é arrogante.
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
inglês podem ser encomendados no
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