|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
As quatro faces de Emma: Flaubert
Publicado em 1857, "Madame Bovary" valeu ao seu autor um processo; eram tempos em que as artes causavam escândalo por razões menos artísticas que morais
|
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Com a recente edição em
DVD de "Madame Bovary" [1933], de Jean Renoir (Versátil), estão disponíveis as três mais importantes
versões para o cinema desse romance. As outras foram dirigidas por Vincente Minelli
[1949] e Claude Chabrol [1991].
Uma tentativa de compará-las não é descabida. A tarefa,
porém, não pode se enfeixar
numa só coluna: é melhor estendê-la um pouco. O romance
é um bom começo para hoje.
"Madame Bovary" entrou de
modo definitivo na cultura do
Ocidente. Diz-se bovarismo como se diz don-juanismo ou
quixotesco. O dicionário define: "Bovarismo: tendência que
certos indivíduos apresentam
de fugir da realidade e imaginar
para si uma personalidade e
condições de vida que não possuem, passando a agir como se
as possuíssem".
O livro, publicado em 1857,
valeu ao seu autor um processo. Eram tempos em que as artes causavam escândalo por razões menos artísticas que morais: Baudelaire, Manet, Courbet, entre outros, sofreram a
execração pública que podia
ativar a Justiça.
Depois dos movimentos revolucionários de 1848, chamados de "a Primavera dos Povos", a palavra realismo pairava
com muita força no campo das
artes. O termo conjugava significações diversas; dentre as
mais fortes estava a recusa dos
mundos imaginários criados
pelos românticos.
A sociedade contemporânea
de então escandalizava-se com
o rosto de si própria, reconstituído sem embelezamento por
meio das artes.
Oco
Émile Zola declarou que
"Madame Bovary" foi o primeiro dos romances naturalistas
porque haveria nele a "reprodução exata da vida, a ausência
de todo elemento romanesco".
Realista, naturalista, a classificação importa pouco. Interessa, na frase de Zola, aquilo que
está além de sua própria intenção. Há, decerto, em "Madame
Bovary", uma ausência de toda
peripécia romanesca, no sentido em que não ocorrem episódios excitantes na vida tediosa
da cidade provinciana.
Ocorre porém que, nesse romance, o romanesco se encontra exatamente na ausência de
romanesco. Flaubert disse que
as origens de "Madame Bovary" estavam no "Dom Quixote". De fato, Emma é uma espécie de Dona Quixote, que sofre,
como o herói de Cervantes,
com as relações complicadas
entre ler, imaginar e viver.
De um ponto de vista moral,
os livros românticos, que ela
devorou quando foi educada
num convento, deformaram-lhe a vida, fazendo-a aspirar ao
impossível. Mas foram eles que
lhe deram a grandeza de transformar-se na protagonista de
um melodrama.
Por imaginário que fosse, esse melodrama incidiu sobre sua
existência, levando-a ao suicídio, ato de exceção, ponto em
que a heroína que ela imaginava ser encontra-se com a morte
verdadeira.
O vazio criado pela ausência
do romanesco foi preenchido.
As frustrações de Emma permitiram um romance que se lê
apaixonadamente.
Pulsões
Flaubert amava Chateaubriand e a eloqüência das frases
românticas. Daria vazão a
mundos voluptuosos, embebidos num exotismo desvairado,
em outra obra: "Salammbô",
ponte admirável entre o romantismo e o decadentismo.
Com "Madame Bovary", ao
contrário, regrou sua escrita e
seu imaginário, de maneira
exata, direta, precisa.
Mas o romantismo se infiltra
ao caracterizar os sentimentos
de Emma.
Contraste
A tristeza de Emma é diagnosticada assim: "Era uma
doença nervosa; deviam fazer
com que mudasse de ares". Do
lado de Emma, porém, muda o
estilo: "Como os marujos perdidos, ela passeava uns olhos
desesperados sobre a solidão
de sua vida, buscando, ao longe,
alguma vela branca nas brumas
do horizonte".
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: "Não há indústria do mal" Próximo Texto: Filmoteca Básica: Ladrões de Bicicleta Índice
|