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"Não há indústria do mal"
Para chefe do departamento de psiquiatria da USP, drogas interferem só no temperamento, e não no caráter
DA REDAÇÃO
O conflito de interesses
quanto ao conceito de
sanidade mental não se
restringe à relação de
alguns médicos com a
indústria farmacêutica.
Para Valentim Gentil Filho, chefe
do departamento de psiquiatria da
Faculdade de Medicina da USP, esse é apenas o viés mais comentado
do problema.
"O assunto é complexo, eticamente importante e sujeito a um
monte de vieses. Há muitos conflitos de interesse; além da indústria
farmacêutica, há os interesses políticos, ideológicos, financeiros, de
ONGs, de linhas de psicoterapia. Isso em geral não é dito", afirma o
professor.
Para Gentil Filho, quando um psicoterapeuta critica o uso de medicamentos, é preciso notar que
"também há uma briga de mercado
corporativa entre profissionais de
saúde".
(EGN)
FOLHA - Como avalia as críticas ao DSM
("Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais"), segundo as quais
ele tem má influência sobre os médicos
do mundo inteiro, incluindo novos distúrbios para comportamentos comuns?
VALENTIM GENTIL FILHO - O DSM é só
uma classificação estatística, serve
apenas para dimensionar os problemas que aparecem. É para fins
quantitativos, e deve ser usado para
catalogar; não é um livro-texto.
Infelizmente, em muitos países,
inclusive no Brasil, às vezes há confusão, as pessoas o utilizam como
manual de ensino.
O DSM evolui com os conhecimentos, com novas definições. O
DSM 4 é um avanço em relação ao
DSM 3. O mau uso do DSM 3 pode
ter gerado distorções -talvez isso
seja corrigido na nova versão que está sendo desenvolvida.
O comentário de que o DSM 3 e o
DSM 4 levaram à ampliação do diagnóstico psiquiátrico e que isso levou
a um exagero de prescrição de medicamentos é uma afirmação freqüente, mas difícil de debater ou comprovar.
Pois, nos últimos 28 anos (o DSM
3 é de 1980), houve disseminação de
informações por meios eletrônicos,
além da ampliação do conhecimento sobre disponibilidade de recursos
terapêuticos, o que contribuiu para
um aumento da demanda -as pessoas que sofrem querem ajuda.
E os profissionais de saúde tendem a tentar atender essa demanda.
FOLHA - Em "Timidez", Christopher Lane
afirma que a elaboração do DSM foi influenciada pela indústria farmacêutica,
legitimando uma "cultura da droga". Há
essa cultura no meio da saúde mental hoje em dia?
GENTIL FILHO - Há uma cultura da
droga na sociedade em geral. As pessoas abusam de substâncias desde o
tempo do Noé. A indústria farmacêutica não é uma entidade filantrópica nem universitária -vai atrás de
seus potenciais usuários.
O difícil é pensar que a medicina é
enganada pela indústria farmacêutica, que somos influenciados só por
um vendedor ou um congresso. A
sociedade procura ajuda; isso sempre existiu, buscou-se a cura nas religiões, em outros procedimentos.
Mas quantas pessoas estão sendo
medicadas indevidamente por causa da propaganda, quanta psicoterapia é prescrita indevidamente... Isso
é muito difícil de saber.
FOLHA - Que exageros já encontrou?
GENTIL FILHO - Lembro do caso do
transtorno de pânico. Alguns diziam que estávamos simplesmente
rediagnosticando uma coisa já descrita em 1895 por Freud, sempre
abordada como um problema comum de ansiedade e angústia, que a
abordagem deveria ser mais relativa
à filosofia ou à psicoterapia.
Hoje o transtorno de pânico tem
um diagnóstico robusto, uma base
bem demonstrada.
FOLHA - E quanto à timidez?
GENTIL FILHO - Há traços de personalidade que existem há séculos e podem ser influenciáveis por medicação. Se não fosse assim, as pessoas
tímidas não beberiam antes de entrar em cena em festivais de MPB,
por exemplo.
É possível usar medicamentos para interferir na resposta temperamental. O temperamento depende
de regulagem biológica, também. O
caráter é muito influenciado pela
cultura, mas o temperamento é biologicamente modelado. O fato de
haver medicamentos capazes de diminuir a reação não quer dizer que
todos devam ser medicados.
Mas, se uma pessoa tem uma timidez patológica, que método deve
ser usado? Ou as pessoas devem se
autoflagelar antes da ajuda médica?
Se uma pessoa tem timidez patológica, será que deixar de atender a
demanda não é omissão de socorro?
FOLHA - Há estatísticas para classificar a
timidez?
GENTIL FILHO - Timidez não é diagnóstico psiquiátrico. O fato de haver
um medicamento ou método psicoterápico que ajuda a resolver a timidez não a transforma em síndrome.
Se ela o será um dia, isso dependerá de convenções. Há uma cultura
numa das ilhas do Pacífico em que
as pessoas não tratam uma certa
doença de pele, porque acham que
fica bonito.
FOLHA - Então, para o sr., a pessoa pode
usar drogas para ter uma qualidade de vida melhor...
GENTIL FILHO - O que me incomoda é
dizerem que a indústria farmacêutica é uma "indústria do mal". Existem recursos para lidar com problemas -álcool, tabaco, chocolate etc.
Como médico, é preciso ter alguma base científica. Os médicos tendem a ser éticos e dizer: "Vale a pena
fazer tal mudança de vida" ou "vale a
pena tomar medicamento". Esses
autores que lutam contra o demônio da indústria farmacêutica não
são donos da verdade.
FOLHA - O sr. falou em evitar o "autoflagelo". Adam Phillips trata como erro a
idéia de que é possível ser feliz o tempo
todo. O sr. concorda?
GENTIL FILHO - Está errada a colocação. Medicamento não faz ninguém
feliz. Diminuir o sofrimento não é
trazer felicidade. A felicidade aparece e desaparece de acordo com circunstâncias, é medida em momentos; há felicidade em meio à dor.
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