|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.
Sociedade
A Justiça de cada um
A FOLHA OUVIU 2 DOS PRINCIPAIS CIENTISTAS SOCIAIS BRASILEIROS PARA DISCUTIR A RECENTE CRISE DO JUDICIÁRIO
1
A Justiça brasileira é elitista?
2
O Judiciário brasileiro está em crise? Em caso positivo, qual a solução para ela?
3
O Judiciário precisa de controle externo? Em caso positivo, como fazê-lo?
|
FÁVIO WANDERLEY REIS
ESPECIAL PARA A FOLHA
1
Creio que, numa sociedade
com forte tradição elitista
(que foi mesmo escravista
durante séculos), é fatal que
haja certo elitismo da Justiça.
Não só alguns têm melhor
acesso à Justiça que outros,
mas me parece inegável que
tende a haver também maior
sensibilidade da Justiça aos direitos civis de uns do que de
outros: não se vêem pronunciamentos indignados de ministros do STF sobre o banal
comprometimento até do direito à vida entre populações
pobres das periferias urbanas.
Mas há matizes importantes.
A Justiça do Trabalho, por
exemplo, tem claro viés em favor do trabalhador.
E pesquisas recentes mostram que o tradicional conservadorismo dos profissionais ligados ao direito tem sido substituído pelo apego até majoritário de juízes e promotores à
idéia de justiça social, em detrimento do apego à letra da lei.
2
Há clara tensão entre
duas concepções da atuação do sistema judiciário,
uma salientando a independência dos juízes de instâncias
inferiores e outra empenhada
em racionalizar e centralizar
(com a "súmula vinculante",
por exemplo).
Isso provavelmente é intensificado com a disposição ativista e legislativa que órgãos
como STF e TSE têm manifestado.
Mas não vejo como isso pudesse resultar em crise mais séria, com efeitos paralisantes ou
algo parecido: creio que vamos
ter aprendizado e acomodação,
eventualmente com graduais
mudanças institucionais que se
tornem necessárias.
3
Já temos o Conselho Nacional de Justiça, criado
recentemente e encarregado do controle administrativo e financeiro do Judiciário.
Talvez fosse possível cogitar
ampliar a participação nele de
gente alheia à área jurídica.
Mas não me parece que faça
sentido pretender que se viesse
a ter algum órgão "externo"
com autoridade para interferir
na dimensão propriamente jurisdicional da atividade do Judiciário.
FÁBIO WANDERLEY REIS é professor emérito
da Universidade Federal de Minas Gerais.
GLÁUCIO SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA
1
Se por "elitista" entendermos que as pessoas pobres
têm risco mais alto de a)
serem condenadas; b) cumprir
pena e c) cumprir penas mais
longas, sem dúvida a justiça é
elitista.
As estatísticas existentes são
escassas e não confiáveis, mas
bastam para ilustrar isso. [O
cientista político] Sérgio Adorno demonstrou que o simples
poder de contratar um advogado privado reduz o risco de
condenação.
Mas, se entendermos que os
juízes são muito influenciados
pela situação de classe dos acusados e de suas vítimas, devido
a valores, percepções e preconceitos, é possível que sim, seja
elitista, mas não de maneira ostensiva e com muita variação
entre os juízes.
Em muitos países, o Ministério Público conduz parte do inquérito e, em alguns, chega a
ter escritórios próximos do
equivalente aos nossos delegados.
Passar a função de acompanhar os inquéritos para o Ministério Público reduziria o
tempo dos trâmites e retiraria
parte do que considero um poder excessivo dos delegados.
2
Há uma crise de credibilidade, que não é só do Judiciário, mas de todas as
instituições públicas. As pesquisas mostram que a população não confia nelas.
Até que ponto o descrédito
do Judiciário se deve ao descrédito maior, do setor público,
é difícil dizer. Parte do problema deriva das leis, que são muito arcaicas; o desprestígio do
Judiciário deve ser avaliado no
contexto de leis que favorecem
as delongas e a impunidade.
Mas parte do desprestígio
deriva do afastamento do Judiciário em relação à população,
com a construção de prédios
caros, ostentosos, num país em
que há dezenas de milhões de
pobres. O Judiciário perdeu
sua mágica, seu apelo, porque
seu padrão de vida se afastou
demasiadamente do da média
da população.
3
Quando um poder cresce
e invade as atribuições de
outros, a democracia sofre. Exemplos recentes são o
Peru de Fujimori e a Venezuela
de Chávez.
No Brasil, a invasão mais séria não foi de pessoas, mas do
Estamento militar. Todos os
Poderes devem explicar as suas
ações, devem ser responsáveis
por elas. Essas exigências encontram obstáculos culturais e
institucionais em países com
uma herança corporativista.
A nossa é pesadíssima, e cada
poder protege seus membros
além da razão e, às vezes, além
da decência.
Temos, sempre, problemas
de fronteiras internas, funcionais, entre Poderes. Essa confusão no que concerne os limites do poder de cada um foi evidente no encontro do presidente do Supremo, do ministro
da Justiça e do presidente da
República.
O encontro não tinha razão
de ser: o STF não é subordinado à Presidência da República.
É um poder independente. Essas invasões não acontecem só
entre Poderes, mas dentro de
Poderes, quando um nível invade a jurisdição de outro, do
mesmo Poder, fazendo caso
omisso do processo e de suas
instâncias. É o que está acontecendo.
GLÁUCIO SOARES é sociólogo e pesquisador do
Instituto Universitário de Pesquisas do RJ.
Texto Anterior: Filmoteca Básica: Ladrões de Bicicleta Próximo Texto: Cultura: Não é brincadeira Índice
|