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A subcondição humana
Em "Abolição", a historiadora Emilia Viotti da Costa disseca a formação do racismo no Brasil
FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA
É muito bonito e raro
ver uma historiadora
no auge de sua carreira retomar o gosto pela fala direta, didática
e sintética, voltada aos leitores
em geral. Isso é apenas uma das
coisas que singularizam o trabalho de Emilia Viotti da Costa.
Uma das maiores "scholars"
atuais, professora titular da
Universidade Yale, professora
emérita da USP, uma parte de
seu trabalho atual é organizar
coleções didáticas.
Neste caso, ela reedita um livro cuja primeira edição apareceu em 1982, agora acrescido
de um belo capítulo inédito,
"Depois do Fato", que trata das
conseqüências e dos impasses
do processo abolicionista.
Neste livro, a autora sintetiza
as idéias que desenvolveu em
trabalhos anteriores, como o
clássico "Da Senzala à Colônia"
[ed. Unesp] ou mesmo posteriores, como "Coroas de Glória,
Lágrimas de Sangue" [Cia. das
Letras], no qual estudou a rebelião dos escravos em Demerara (uma sofisticadíssima análise, que trabalha de modo surpreendente a relação entre macro e micro-história e que teve
entre nós uma recepção muito
inferior àquela que merecia).
Luta legalista
Em "A Abolição" [ed. Unesp,
142 págs., R$ 27], ela apresenta
as questões mais relevantes
que envolvem o processo abolicionista e suas contradições.
Há um belo trecho em que
nos é explicada a importância
da Guerra do Paraguai para a
crise que levaria à abolição.
Acompanhamos a luta "legalista" do advogado e poeta negro Luis Gama, que astutamente usava as armas do opressor, a
legislação, a favor dos oprimidos (sua biografia e seus poemas são analisados em um capítulo que discute também os
motivos do engajamento de
abolicionistas como André Rebouças e Joaquim Nabuco).
Vemos as negociações feitas
no Parlamento, pelo menos
desde 1871, para tramar a lenta
"transição" para a abolição da
escravidão, em meio às transformações sociais trazidas pelos processos de modernização
urbana e agrícola.
A desfaçatez do racismo brasileiro aparece de várias maneiras neste livro, inclusive de lugares e temas surpreendentes,
como o episódio da frustrada
tentativa de trazer imigrantes
chineses, discutida no Congresso Agrícola de 1878.
De um lado, evocavam-se os
bons resultados dos chineses
na Califórnia ou em Cuba, além
do fato de que aceitavam qualquer trabalho, quase sem pagamento. De outro lado, os críticos diziam que eram indolentes, corruptos, viciados em ópio
e que iriam "mongolizar" a "raça" brasileira.
No final, o que impediu a imigração chinesa foi a oposição da
Inglaterra e de Portugal, que fecharam os portos de Hong
Kong e de Macau.
Mulheres e jangadeiros
Aprendemos o essencial sobre as razões da Abolição, mas
não apenas do ponto de vista
"político" mais restrito.
Vemos a luta das mulheres
urbanas e suas associações, a
luta dos jangadeiros do Nordeste, de ferroviários, de poetas. A autora é especialmente
sensível aos "heróis anônimos", tema de um capítulo que
trata das sociedades secretas
que instigavam rebeliões e fugas das senzalas.
Tudo isso se soma, e possibilita, o "golpe final", nas palavras
da historiadora, trazido pelas
"rebeliões das senzalas".
Ela sabe e nos mostra que a
abolição não foi uma "dádiva"
das classes dominantes, mas o
resultado da ação inconformista dos escravos associada a uma
ampla crise social.
O último capítulo mostra a
terrível condição na qual os ex-escravos foram lançados: a pobreza, a exclusão, a mendicância, a exploração dos fazendeiros (agora patrões).
A abolição da desigualdade
social, diz Viotti, ainda não terminou. A historiadora conclui
seu livro com as palavras de um
antigo líder operário lembrando que a escravidão do negro
acabou, "mas a do trabalhador,
e do pobre, ainda continua".
FRANCISCO ALAMBERT é historiador.
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