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O MODERNO ANTIMODERNISTA
"Paulo Emílio no Paraíso", de José Inacio de Mello Souza, reconstitui a trajetória do principal crítico de cinema brasileiro
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Paulo Emílio no Paraíso
504 págs., R$ 50,00
de José Inacio de Mello Souza. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/ 21/
2585-2000).
Silviano Santiago
especial para a Folha
Paulo Emílio no Paraíso", de José
Inacio de Mello Souza, nos ajuda a
melhor conhecer a biografia de
Paulo Emílio Salles Gomes e, pela
inserção do intelectual na moderna cultura cosmopolita, a delinear com precisão o perfil biográfico de vários participantes do modernismo brasileiro. Ninguém é menos modernista do que Paulo
Emílio; em compensação, ninguém é
mais moderno no Brasil do século 20.
Numa cultura que se manifesta pelo peso
do "pão, pão, queijo, queijo", de que
Graciliano Ramos e Carlos Drummond
são os mais legítimos representantes, e
hoje pelos "reality shows", Paulo Emílio
se distanciou dos pares para vivenciar
transgressões, delírios, sonhos e realizações típicos das vanguardas no Ocidente.
Vale dizer, a radicalidade desses movimentos.
Assinale-se que o traço mais importante da trajetória do político, crítico, produtor cultural, professor universitário e
escritor é o seu não-enquadramento no
cânone modernista brasileiro, tal como
estabelecido pela biografia dos pares. No
século 20 nacional, Paulo Emílio é ex-cêntrico e é modelo.
A arte da inconveniência
A vida de Paulo Emílio deve ser compreendida
pela figura da inconveniência (o latim
"convenire" reúne o prefixo "com" e o
verbo "venire", vir). Quando tudo indica
que se deva descrevê-lo em conveniência
com determinado grupo social ou conjunto firme de idéias ou de obras, Paulo
Emílio escapa pelo ladrão. Ele é exuberante. A inconveniência assinala o momento em que a exuberância extravasa.
Ao extravasar, ela explode contornos
nítidos, predeterminados pela inclinação empírica dos pares. Canalizada pelas
quimeras da utopia, a água que o ladrão
bota fora viceja poças ao lado do reservatório estanque. Paulo Emílio tem prazer
em patinhar nas poças que sua inconveniência alimenta.
Ao prefaciar os depoimentos de Paulo
Emílio sobre amigos, [o crítico] Roberto
Schwarz destaca passagem em que ele
detecta em Plínio Sussekind Rocha, seu
colega em Paris, um traço fundamental
da sua prática científica. Escreve Paulo
sobre o amigo brasileiro: "Tenho a impressão de que naquele tempo Plínio
procurava estabelecer, nos mais diversos
domínios do conhecimento, um minucioso elenco de exceções e de que vislumbrava a possibilidade de uma regra que
as abarcasse todas". Essas palavras podem ser aplicadas a Paulo Emílio, já que
traduzem, para ficar com nossos termos,
a radicalidade política e estética do excesso. Como construir um reservatório
com as poças d'água que boto fora pelo
ladrão? Como emoldurar conceitualmente o que não é passível e possível de
ser enquadrado -eis o grande dilema
que vida e obra de Paulo Emílio coloca
para os seus contemporâneos.
Contra o socialismo real
Paulo Emílio está tão inserido na esquerda brasileira da década de 30 quanto Jorge Amado, no entanto não gosta de se definir como homem de partido nem assinar manifestos coletivos. Graças à prematura rebeldia ao socialismo real, os certinhos esboçam caricaturas dele. Ao contrário de Amado, recebe pouca ou nenhuma benesse e propaganda partidária.
Por razões políticas, fica preso no [bairro
do" Paraíso e na Maria Zélia, no mesmo
momento histórico em que Graciliano
Ramos é recolhido ao presídio na Ilha
Grande.
Graciliano aguarda o resultado das
conversas dos amigos com o ditador;
Paulo escapa espetacularmente do xilindró, fugindo para o exterior. Paulo não
padece o ultraje da reabilitação social em
terras cariocas, exigida do nosso romancista maior. Como o autor de "Memórias
do Cárcere", combate o ócio por detrás
das grades com o gosto pela educação e
cultivo das artes, mas do estoicismo daquele se distancia pelo pantagruelismo
proporcionado pela "querida mamãe".
Como Fernando Pessoa, Paulo Emílio
é dado a heterônimos. Não busca, porém, o sublime proporcionado pela extravagância estética, antes a pomada
contra as brotoejas do esquerdismo. O
famoso "Merda", livro supostamente escrito por operário, não trazia palavrão
(só o título), ao contrário de obras literárias populistas onde pululavam os palavrões, como nas peças de teatro escritas
pelo mentor Oswald de Andrade.
É tão boêmio, parisiense e viajor quanto seu mestre e amigo, mas, ao deixar por
poucas vezes o casamento trair a vida em
bordel, Paulo Emílio é praticamente monogâmico e "fiel ao velho amor" e, ao terminar o ciclo das viagens, ajuda a construir o império institucional da Cinemateca Brasileira.
Capaz de grande habilidade empresarial, como o nosso Augusto Frederico
Schmidt ou o gringo Wallace Stevens,
embora deles não se aproxime pelo enriquecimento financeiro. Morre com dificuldades de dinheiro. É o único intelectual modernista a levar até as últimas consequências a proposta de Mário de
Andrade da "ação da arte pela arte". Estou me referindo aos vários projetos que
culminam com a Cinemateca Brasileira,
de que fui beneficiário na provinciana
Minas Gerais dos anos 50 e foram beneficiários os sócios do Centro de Estudos
Cinematográficos, em Belo Horizonte, e
os diretores e colaboradores da "Revista
de Cinema".
A descoberta do cinema por Paulo
Emílio é parisiense e tardia, como assinala Mello Souza. Por ser tardia é que ela sustenta de maneira radical a retirada da
reflexão sobre a cultura do campo tradicional da literatura, onde ela e ele se formaram, para entregá-la à teoria e à prática cinematográficas. A tarefa é ciclópica e é preciso enfrentar os anões de plantão. Leia-se o paradoxo que Paulo Emílio enuncia em 1957: "Os que têm uma
visão ampla do fenômeno cultural entendem melhor quais são os serviços
prestados por uma cinemateca do que os
mais próximos à arte do cinema".
"Biblioteca" de filmes
Aos 16 anos, Glauber Rocha lembrava mais os
escritos de Euclides da Cunha e José Lins
do Rego do que as teses expostas por André Bazin e os "Cahiers du Cinéma". À
semelhança da literatura, onde o acervo
da biblioteca se combina ao comércio da
livraria e ao estudo na escola para formar
especialistas e eruditos, chegara o momento de fomentar a qualidade nacional
através duma "biblioteca" de filmes, que
se mesclaria à exibição deles nas salas de
espetáculo e cineclubes.
O projeto duma cinemateca no Brasil,
a ser criada nos moldes da homônima
francesa e do Film Board norte-americano, sempre alimentou a esperança de jovens críticos de cinema. Todos, indistintamente, passariam da resenha ao ensaio, do ensaio ao livro, do livro à filmagem, da atualidade à história, da teoria à
prática. Haverá clave mais sugestiva para
ler "Cinema - Trajetória no Subdesenvolvimento" (ed. Paz e Terra)?
Esse desajuste em relação ao cânone é
bem ajustado (insisto) à exuberância de
Paulo Emílio e aos novos tempos que
inaugura. Em lugar de compreender o
desajuste na sua radicalidade, os homens
de partido caem na cilada armada pelo
"mas", de que são exemplos os parágrafos descritivos acima, que escrevemos
propositadamente. A contradição, aclaremos, não está na personalidade de
Paulo Emílio, está antes no modo radical
como o intelectual quis se inserir na cultura brasileira e levar esta a se inserir na
moderna cultura cosmopolita ocidental.
Paulo Emílio não é intelectual de rebanho nem ovelha negra. Desta se diferencia: caso fosse recolhida pelo divino pastor, não se submeteria, pregaria uma outra palavra, tão ou mais profética, sobre
o destino do homem.
Homens de partido gostam de sublinhar a contradição na vida de Paulo
Emílio. A (aparente) contradição sempre serve para apequenar. Eduardo Maffei, em "A Batalha da Praça da Sé", relato
da manifestação de esquerda contra os
"galinhas-verdes" (7 de outubro de
1934), de que o universitário Paulo Emílio sai herói, não consegue controlar o
ressentimento.
Paulo Emílio é a negação do jeito de ser submisso do brasileiro, em que muitos dos nossos melhores deixam sucumbir sua originalidade; por querer se enquadrar aos seus ideais de mocidade, ele não se deixa enquadrar pelo carro
civilizatório da conveniência, que a todo momento nos atropela
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Desabafa e vale a pena transcrevê-lo:
"Mas o destino tem das suas. Quando
[Paulo Emílio] morreu, quem fez sobre
seu ataúde a oração fúnebre foi o mesmo
que, integralista, naquele episódio estivera do lado oposto, Francisco Luís de
Almeida Sales". Partido e destino escrevem certo, ainda que por linhas tortas e
tardias.
Ao contrário do que pensa Maffei,
Paulo Emílio não cultiva os opostos. Não
edifica o movimento dialético, que se
compara ao torvelinho das contradições.
Cultiva antes o radicalismo pela semelhança entre oponentes. O oponente,
quando encarado como semelhante, é
signo não de abastardamento, mas de
compressão intestina dos elementos que
estão em luta na realidade social, política
e econômica. O oposto do comunista
não é o integralista, é o liberal. O mais
grave defeito em país ditatorial é o de
deixar que liberalismo e democracia se
confundam. Comunistas e integralistas
são oponentes e, por isso, semelhantes
na luta contra o liberalismo. A exuberância não admite o status quo como
parceiro de vida. Paulo Emílio é antiliberal e democrata.
Talvez seja essa a herança maior que
Paulo Emílio tenha recebido dos devastadores anos 30 e prodigado a muitos estudantes da USP. Lembro-me de palavras de Murilo Mendes na revista "Lanterna Verde": "É uma mocidade que se
orienta para o comunismo ou para o catolicismo, mas que não quer saber de liberalismo". E destas de Jorge Amado:
"Aquele que não está de um lado está
necessariamente do outro".
Paulo Emílio é a negação do jeito de
ser submisso do brasileiro, em que muitos dos nossos melhores deixam sucumbir sua originalidade. Por querer se enquadrar aos seus ideais de mocidade, ele
não se deixa enquadrar pelo carro civilizatório da conveniência, que a todo momento nos atropela. A democracia não
está em cima do muro.
A formação do mito
Se homens de partido tendem a apequená-lo pelo viés
da contradição, os amigos, admiradores
e ex-alunos tendem a magnificá-lo pela
mitificação (sem "s" antes do "t"). De
novo, a exuberância colhe os seus frutos,
agora na fundação do mito que o singulariza. Como nutrir o fascínio que exerce
sobre o fascinado, sem cair nas armadilhas do populismo e do carisma? Esse é o
maior risco da politização pela exuberância. Como transformar um traço fascinante na economia libidinal do indivíduo em força anônima e coletiva, que faz trabalhar os reclamos da justiça social e
da igualdade econômica?
[O crítico] Antonio Candido, em recente entrevista à TV Cultura, delega
a si o papel de planeta que girou em
torno de Paulo Emílio. Em todo e
qualquer caso, principalmente no caso de Paulo Emílio, é preciso tomar
cuidado com o heliocentrismo (e tomo aqui a palavra como Hélio Oiticica a conceituou ao tentar explicar a
função que exercia e o papel que performava em Nova York. Oiticica, é
claro, trabalhava seu nome de batismo a partir de dois sinônimos: o Sol,
brilho, e o gás nobre, leveza).
A mitificação tem perseguido a biografia de Paulo Emílio, em que fugas
espetaculares da cadeia se misturam a
exílios inventados, em que festas de
arromba em pleno oceano Atlântico
se acoplam a bordéis que acordam ao
tonitruar da sua voz. "Paulo Emílio no
Paraíso" dela não escapa em algumas
passagens. Citemos uma.
Não se justifica que Mello Souza
caia no cacoete memorialista inaugurado por Fernando Gabeira e companheiros de geração. O cacoete diz que
o relato da infância não tem importância na biografia do guerrilheiro político. Este começa a viver aos 20 anos
no livro, já adulto e inteligente. Logo
na introdução, Mello Souza escreve:
"Pouco saberemos [nesta biografia]
sobre o Paulo menino ou adolescente,
e isso não faz muita falta". Faz, José
Inácio, sobretudo se páginas adiante
você descrever -numa linguagem de
história em quadrinho, tipo Capitão
Marvel- o dia da aparição do menino Paulo para a vida social.
Numa biografia tão pesquisada e
meticulosa, tão diligentemente organizada e escrita, como ler o trecho em
que se descreve a ingestão por Paulo
de pó de quenopódio? Antes era "um
menino apático e inexpressivo". Ingerido o vermífugo, passa pela "morte",
"estado cataléptico" e "renascimento". E, shazam!, "acorda de chofre,
completamente mudado. Estrábico e
careteiro. E muito falador". Nasce o
Paulo "diferente", pronto para lutas
libertárias, que o distanciariam mais e
mais do conservadorismo familiar.
Será que é dessa forma que conseguiremos tirar Paulo Emílio do "confortável pedestal mitológico"?
Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de, entre outros, "Stella
Manhattan" e "Uma Literatura nos Trópicos"
(ambos pela ed. Rocco).
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