|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A velhice como metáfora
É relançado no Brasil "Senilidade", de Italo Svevo, romance precursor da moderna literatura italiana
|
Senilidade
268 págs., R$ 28,00
de Italo Svevo. Trad. de Ivo Barroso. Ed. Nova
Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel.
0/xx/ 21/ 2537-8770).
Maurício Santana Dias
da Redação
Emilio Brentani tem 35 anos, é funcionário de escritório e um romancista razoavelmente conhecido na cidade onde mora. Ele acaba
de conhecer Angiolina, uma louraça do
subúrbio que vem quebrar a sua rotina,
partilhada com a irmã Amalia. A moça
tem poucos recursos e, ao que parece,
trabalha em "casa de família". Os dois estão no início de um arriscado caso amoroso. Em torno dessa história mínima,
banal, Italo Svevo (aliás, Ettore Schmitz)
constrói "Senilidade" (1898), um dos primeiros romances modernos da literatura italiana.
Muita gente até hoje estranha o título
do livro. Svevo tinha 37 anos quando o
publicou, sem nenhum sucesso. O protagonista, como já foi dito, é um senhor de
35 anos. Portanto a idéia de velhice estampada no título não remete ao plano
natural. Trata-se de outra coisa, mais
subterrânea que a decadência do corpo.
A falta de vitalidade do protagonista e a
sua inépcia são expostas logo de saída, e
seu perfil já antecipa o daqueles futuros
homens sem qualidades que estarão no
centro da literatura do século 20.
O livro começa abruptamente, com
um diálogo em que Emilio deixa claro a
Angiolina sua intenção de viver um caso
sem compromisso -entenda-se, sem
casamento. Angiolina a princípio aceita
o trato, submetendo-se à imposição do
parceiro. A partir de então, começa a história do embate entre dois mundos diferentes: ele, um retraído empregado de
escritório com veleidades literárias; ela,
uma "jovem do povo", exuberante, expansiva e quase sem veleidades.
Espécie de Oblomov italiano, Brentani
padece de uma tremenda dificuldade de
agir, seja na vida prática, seja no campo
dos afetos. É um abúlico. E é óbvio, desde
o início, que a sua história de amor não
dará certo. Mas a previsibilidade, aqui, é
o que menos importa. O romance avança de forma linear, passando por todas as
etapas do enamoramento, da dúvida,
das pequenas ciladas e traições até se esgotar num fracasso mesquinho.
O lugar onde vivem as personagens é
Trieste, cidade na fronteira entre o antigo Império Austro-Húngaro e a Itália,
predominantemente bilíngue. A atmosfera é a da belle époque, mas sem brilho.
Vale lembrar que estamos na "cidade do
trabalho", como diz três vezes o narrador. "Senilidade" é também o grande romance dessa cidade ambígua, passado
em suas ruas centrais, na periferia e nas
proximidades do mar.
Mas o que era para ser um simples caso
de amor se frustra no sentido de isolamento que vai tomando os personagens,
indivíduos tão estranhos uns aos outros
quanto a si mesmos. A crescente obsessão de Emilio por Angiolina é apenas
sintoma de uma solidão coletiva. Na raiz
do estranhamento estão os papéis sociais
bem demarcados, expostos ao ridículo
dos contratos e preceitos vigentes na sociedade da época. E, no centro de todos
os contratos, o casamento.
Precisão discreta
Sem querer aderir
a ele, Emilio tenta obter o máximo proveito (lucro) da situação. Em Angiolina
ele quer uma mulher que corresponda
ao seu ideal de sublime e, ao mesmo tempo, satisfaça suas pulsões eróticas e de
poder. Mas o pólo de dominação rapidamente se inverte, e a relação se transforma naquilo que o organizador das obras
completas de Svevo na Itália, Mario Lunetta, chamou de "duplo jogo de massacre". Para quem assistiu aos filmes de
Buñuel, difícil não se lembrar de "Esse
Obscuro Objeto do Desejo" quando se lê
este romance.
Obcecado por um ideal de amor convencional e contraditório, Brentani chega a intuir em alguns momentos a possibilidade de uma vida mais livre e desimpedida. Mas não consegue, está emparedado na própria subjetividade de ferro,
na moral burguesa que lhe dá forma, assim como o Bentinho de Machado -seu
contemporâneo- se vê imobilizado na
trama das convenções sociais.
Svevo movimenta essas peças com
uma precisão discreta, realçando o que
há de ridículo em cada um, expondo os
vexames cotidianos, escancarando bloqueios psicológicos e barreiras de classe,
o que lhe permite uma aproximação
neutra do "homem comum enfim". Nesse movimento, o escritor anula a distância entre autor e personagem, antecipando o moderno autobiografismo: Brentani é um duplo de Ettore Schmitz/Svevo.
O uso do monólogo interior, a linguagem plástica da narrativa, perfeitamente
recriados por Ivo Barroso, vão moldando não só o desmoronamento da consciência de Emilio, mas também do conjunto de valores que o sustenta -ou que
o torna insustentável. Sofrendo a ação
desse processo, Brentani sonha uma segunda vida, como se a primeira tivesse
sido gasta na frustração e na "velhice" ou
triturada no que Eugenio Montale chamou de "épica da causalidade cinzenta
da vida de todos os dias".
No fim das contas, Emilio vive sua tardia educação sentimental. A irmã com
quem mora enlouquece como Ofélia e
morre. Angiolina foge para Viena com
um caixa de banco que dera um desfalque. E Brentani volta apaziguado à "normalidade" de uma vida sem desejos.
Em "Senilidade", a crítica ao conformismo e à inação da vida contemplativa
termina, no limite, se voltando contra o
próprio ofício da literatura. Anos mais
tarde, num de seus ensaios, um Svevo
consagrado e já velho se referirá a ela como se falasse de uma doença: "A esta altura já eliminei definitivamente de minha vida aquela coisa ridícula e prejudicial que se chama literatura".
Texto Anterior: O desgosto teórico de Greenberg Próximo Texto: lançamentos Índice
|