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O escritor se diverte
Walnice Nogueira Galvão, que está lançando obra sobre Guimarães, explica o gosto do autor por criar palavras e critica a reforma ortográfica
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Crespa, rumorosa e incômoda", segundo
definição do próprio
autor, a literatura de
João Guimarães Rosa representa uma tentativa de
devolver às palavras a possibilidade de propiciarem susto e
prazer, para além dos clichês
que as banalizam na era da indústria cultural. A afirmação é
da professora de literatura da
USP Walnice Nogueira Galvão.
Uma das principais especialistas na obra de Rosa, ela lhe
dedica a coletânea de ensaios
"Mínima Mímica" (352 págs,
R$ 53), que está sendo lançada
pela Companhia das Letras.
Na entrevista a seguir, a pesquisadora também comenta o
legado e atualidade do autor de
"Grande Sertão: Veredas" e critica a nova reforma ortográfica
da língua portuguesa.
FOLHA - Como a sra. sintetizaria a
importância de Guimarães Rosa para a literatura brasileira?
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO - Não
estamos acostumados a ter escritores desse padrão: alto nível
de criação, inclusive lingüística,
aliado a erudição universal.
FOLHA - A sra. vê em Guimarães
Rosa uma síntese entre duas correntes importantes e até então antagônicas na literatura brasileira, regionalismo e espiritualismo.
GALVÃO - Ao operar a síntese, é
como se Guimarães tivesse ao
mesmo tempo superado as
duas tendências.
FOLHA - Foi o maior escritor da história da literatura brasileira?
GALVÃO - Isso é um pouco arriscado de dizer. Eu diria que
ele é quem levou mais longe o
experimento lingüístico.
FOLHA - Muitos vêem Machado de
Assis como o único escritor brasileiro
de importância comparável. E é curioso ver que, num trecho dos diários de Guimarães Rosa, há uma severa crítica à obra de Machado, que
seria um escritor "antipático de estilo", com "artifícios baratos" e de leitura tediosa.
GALVÃO - Ele nunca disse nada
disso em público. Numa enquete sobre o melhor romance brasileiro de todos os tempos, ele
respondeu que era "O Louco do
Cati", de Dyonélio Machado
-excelente romance, aliás.
Mas é uma resposta original,
até excêntrica.
FOLHA - Ele não gostava também
de admitir influências de outros escritores, por exemplo Joyce.
GALVÃO - O Arquivo Guimarães Rosa [do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo] tem um caderno com suas leituras de Homero, bem aproveitadas na obra.
Ele lia e anotava, mas não saía
contando por aí.
FOLHA - Que imagem de Brasil seria possível depreender da obra de
Guimarães Rosa?
GALVÃO - Um Brasil em que
existe uma oligarquia, que por
sua própria natureza é minúscula, comandando, dominando,
explorando uma plebe enorme.
FOLHA - E é possível tomar esse pano de fundo de violência sertaneja e
trazer para a realidade urbana, como se Guimarães Rosa estivesse denunciando um mal atávico da sociedade brasileira, um eterno retorno?
GALVÃO - Só se você comparar
Guimarães Rosa com "Cidade
de Deus": mas são quantidades
não comparáveis, sua obra não
autoriza ninguém a fazer uma
coisa dessas.
FOLHA - A inovação lingüística rosiana é uma tentativa de restaurar
uma ordem cósmica, uma harmonia
perdida de natureza e cultura?
GALVÃO - A indagação sobre a
tragédia da constituição da civilização é só no conto "Meu
Tio o Iauaretê": ali vigora o
ponto de vista do índio.
Ele é um escritor mais para o
otimista. Vejo em Rosa uma
grande alegria na fruição da
amizade, da comida, da bebida,
das mulheres, da natureza, entende? Ah, e tudo começa pela
fruição da linguagem, você vê
que ele se diverte criando palavras, ou sintaxes arrevesadas.
FOLHA - Quanto à cidade grande...
GALVÃO - De que nunca fala...
FOLHA - E isso não seria parte de
um projeto filosófico, político?
GALVÃO - Não tenho idéia: ele
só é mais claro quando diz, no
"Grande Sertão", "cidade acaba
com o sertão. Acaba?". Ou seja,
é indecidível. Ele tem muito isso de ficar no fio da navalha, na
ambigüidade, uma coisa formidável para um criador.
FOLHA - E quais seriam as principais ressonâncias do escritor na cultura brasileira em geral, por exemplo na música?
GALVÃO - Uma obra como essa
poliniza outras áreas, começando pela canção. Você tem já
mais de dez filmes, a maioria
fiel à letra e infiel ao espírito:
apropriam-se do enredo, mas
não pegam o tratamento "crespo e rumoroso". Glauber Rocha
era um fã e aproveitou muito de
Guimarães Rosa. No teatro, a
mais memorável é a encenação
de Antunes Filho.
FOLHA - Quanto à literatura, a sra.
afirma que a influência de Rosa é
hoje maior entre os escritores africanos do que entre os brasileiros.
GALVÃO - Mia Couto ou Luandino Vieira têm o toque, as
marcas do Guimarães Rosa.
Como eram todos militantes
políticos, socialistas, revolucionários, pensavam que o modelo
a seguir era o do romance de
denúncia social. Quando leram
Guimarães Rosa, esse tipo de
experimento os iluminou e
passaram a praticá-lo: é a fecundação de um modelo.
FOLHA - O uso recorrente de neologismos e arcaísmos visava a romper
com os clichês da língua corrente?
GALVÃO - O inimigo dele realmente é o clichê, o lugar-comum: ele queria que a palavra
de novo nos assustasse, porque,
se você usa muito uma palavra,
ela se desgasta, se banaliza.
FOLHA - E quanto à relação de Guimarães Rosa com a imprensa, a sra.
mostra que era o oposto do entusiasmo de Drummond.
GALVÃO - Ele se esquivava, dava poucas entrevistas e quase
não escreveu para jornal: era
escritor de livro. E é divertido
ler nelas o negaceio: o entrevistador pergunta uma coisa, ele
responde outra. Ele é trancado
a sete chaves.
FOLHA - Ele parece exprimir um
sentimento de religiosidade todo
particular, sem referência a nenhuma confissão determinada.
GALVÃO - Está dito com todas
as letras no "Grande Sertão":
"Bebo água de todo rio", ou seja, toda religião é boa. Riobaldo
contrata uma rezadeira, gosta
de cantar hinos com os protestantes, acredita na doutrina de
Kardec, que é o espiritismo,
sendo ele próprio católico. É
tão brasileiro isso...
FOLHA - Há risco de um autor como
Guimarães Rosa ser esquecido ou ficar elitizado?
GALVÃO - Penso que é o contrário: o que não fica é o que é superficial, fraco e ruim. O dicionário "Houaiss" tem 400 mil
palavras. O rádio, a televisão, o
jornal, a literatura que se faz
hoje não chegam a 20 mil: estão
jogando fora 380 mil.
FOLHA - O que a sra. pensa da reforma ortográfica da língua portuguesa, que está sendo implantada?
GALVÃO - Quando sai uma reforma dessas, jogam-se no lixo
todos os livros didáticos, para
fabricar e vender tudo de novo.
É uma reforma supérflua e inútil, provavelmente interesseira.
Nunca vi ninguém fazer isso
com o inglês, por exemplo, que
é cheio de consoantes e vogais
que ninguém pronuncia -e
nem por isso é preciso fazer reformas ortográficas periódicas.
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