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Um para o outro
Leia trecho de conto de Machado de Assis que tinha partes consideradas desaparecidas e que sai pela primeira vez na íntegra no mês que vem
Vivam um para o outro, foi a última palavra do coronel
Trindade no leito
da morte.
Ouviram-lhe, com religioso
respeito, seus dois filhos
Henriqueta e Julião, ela de 18
anos, ele de 20; mas nada lhe
puderam responder. Cabia a
vez ao soluço: a dor de perder o
pai era mais que tudo naquela
ocasião.
Também nada mais disse o
moribundo; foi aquela a última
palavra, se palavra se pode chamar um som mal expresso e já
tingido da descor da morte.
Poucos minutos depois morreu
o coronel, e morreu sobre a tarde do dia 4 de outubro de 1862.
A casa em que se finava era situada no Engenho Velho, e fora
mandada construir por ele
mesmo, alguns anos antes.
- Já sei que te pretendes casar, disse-lhe por essa ocasião o
mais galhofeiro de seus amigos,
o desembargador Tinoco.
- Não, retorquiu ele; a minha vida é cair com a casa
-cairmos de velhos.
Mas a idéia falhou, e o coronel morreu com pouco mais de
cinqüenta anos, viúvo qual era
desde os quarenta, entre seus
dois filhos e alguns parentes,
mais ou menos chegados. Julião e Henriqueta deram ao
morto as lágrimas do mais sincero desespero: não houve consolações, naquele lance, que
pudessem entorpecer a dor íntima e profunda, nem minguar-lhes a manifestação ruidosa; não as podia haver. Desde
longos anos, o velho coronel
era para eles pai e mãe; era
quem lhes substituía a esposa
extinta e nunca deslembrada.
Acresce que a doença que levava o pai fora rápida, e destruíra
em poucos dias um organismo
que parecia destinado a enterrar ainda muitos anos; e, ao cabo, o enterrado era ele, com todo o vigor de que dispunha.
Não era pobre o coronel
Trindade, mas abastado, e sobre abastado, econômico; de
maneira que, ao menos, não teve a dor de deixar os filhos ao
desamparo -e digo ao desamparo, porque Julião não completara ainda os estudos, não
tinha posição ou emprego,
donde tirasse a subsistência, se
precisasse de a ganhar. Estudava na Escola Central, diziam
ser bom estudante, e assim
provou ser em todos os exames
que fez, e dos quais se saiu com
aprovação plena, e não raras
vezes com louvor. A esperança
do coronel era ver o filho engenheiro, louvado e procurado
-o engenheiro Trindade- filho do coronel Trindade; era a
sua esperança e seria a sua glória. A realidade foi outra -tão
certo é que a esperança é nada.
2.
Um ano depois do acontecimento, apenas indicado no outro capítulo, recebeu Julião o
seu diploma de engenheiro -e
esse remate de alguns anos de
honrado labor, de estudos sérios, não lhe deu a alegria com
que contava; faltava uma pessoa. A irmã, que não menos do
que ele sentia aquela ausência,
buscou ainda assim dissimulá-la; e ele, pela sua parte, tratou
de esconder o que sentia. Esses
dois corações possuíam o melindre dos sentimentos, a discrição das dores repartidas, que
não desejam agravar-se mutuamente, e portavam-se com a
habilidade que a natureza não
concede a muitos, talvez a raros.
- Julião, disse Henriqueta
três dias antes deste tomar o
grau de engenheiro- tive uma
idéia.
- Que é?
- Quero primeiro que você
aprove.
- Mas que é?
- Aprova?
Julião sorriu.
- Se não é enforcar-me,
aprovo, disse ele.
- Não é enforcar, é jantar; é
jantar no dia em que você receber o seu diploma de engenheiro.
- Ora!
- Qual ora! Já tenho a lista
dos convidados; são os nossos
parentes.
- Só?
- Só.
- Titia, que diz? perguntou
Julião a uma senhora idosa que
estava na sala, a poucos passos,
com um jornal na mão.
- Digo que Henriqueta pensa muito bem
.
A tia de que se trata era-o por
parte de mãe; tinha os seus cinqüenta anos, chamava-se D.
Antonica; vivia com eles desde
a morte do irmão.
Não havia remédio: Julião
aceitou o jantar; limitou-se, todavia, a pedir que não fosse lauto nem ruidoso; queria uma
coisa puramente de família,
porque o acontecimento era de
família.
Já sabemos que Julião fora
bom estudante; sabemos também que era excelente rapaz;
acrescentemos que não era
feio, antes bonito, gravemente
bonito, másculo e sério. Não se
imagine um jarreta, enfronhando a sua mocidade numa
gravata de sete voltas; não: sabia ser elegante, gostava de andar à moda; não usava, porém,
pedir à moda todas as suas extravagâncias e excessos; era
discreto até no vestir.
Henriqueta pertencia à classe de mulheres que sabem ornar-se, qualquer que seja a qualidade do estofo ou o corte do
vestido; tinha a elegância nativa. Era alta, cheia, musculosa,
talhada com amor no mais belo
mármore humano. Talvez não
agradassem a alguns os olhos
pardos e pequeninos; mas o
olhar que chispava deles devia
por força angariar adoradores
ou amigos; amigos sim, que
eram da natureza dos que falam mais aos sentimentos do
que aos sentidos. Eram pequenos de si, e pequenos porque a
testa era larga, uma testa serena e pura; tão pura e tão serena
como o pensamento que ardia
no interior. Nunca esse pensamento cogitara no mal; ignorava-o, que é o melhor meio de o
não atrair. A boca, que era delicadamente fendida sobre um
queixo macio e redondo, não
conhecera ou não pronunciara
jamais uma só palavra de cólera, porque a própria travessura
de Henriqueta, quando criança,
era das que se acomodam sem
gritos nem lágrimas.
Henriqueta era o tipo da complacência, da bondade, da resignação branda e modesta. Quem
lho não lesse na figura e nas
maneiras, compreendê-lo-ia
no fim de alguns dias de trato.
A pontualidade com que ela
obedeceu ao desejo do irmão
provava o que já sabemos -isto
é, que era de sua parte dócil, e
que também sentia a ausência
do chefe da família. O jantar foi
simples, modesto e tranqüilo;
nenhum tumulto, nenhuma
excessiva alegria. Os donos da
casa deram o tom aos convivas;
cada um destes compreendeu
que faltava alguém pessoa e que
era acertado não acordá-lo do
sono.
O trecho acima é o início do conto "Um para o Outro", de Machado de Assis, que será publicado
pela primeira vez em sua íntegra no mês que
vem, em "Contos de Machado de Assis - Relicários e Raisonnés" (co-edição ed. Loyola/ed.
PUC-RJ), com organização de Mauro Rosso.
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