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Sociedade
Além do sapatinho
Estrela da arquitetura mundial, a iraquiana
Zaha Hadid fala sobre a sandália que criou para a São Paulo Fashion Week e discute o futuro das cidades
VIVIAN WHITEMAN
DA REPORTAGEM LOCAL
A
iraquiana Zaha Hadid é considerada
um dos maiores nomes da arquitetura
contemporânea. Em
2004, tornou-se a única mulher
premiada com o Pritzker,
honraria máxima entre os arquitetos, que já foi concedida a
nomes como o americano
Frank Gehry, o holandês Rem
Koolhaas e também a Oscar
Niemeyer -cuja obra ela considera uma grande fonte de inspiração.
Ao lado de Koolhaas, seu ex-professor, e Gehry, Hadid participou, em 1988, da exposição
"Deconstructivist Archictecture", realizada no MoMA (Museu de Arte Moderna), em Nova
York, considerada um marco do
movimento desconstrutivista
na arquitetura.
A base conceitual do grupo,
embora muitos tenham renegado o rótulo nos anos 90, era o
afastamento de conceitos modernistas, como funcionalismo
e purismo das formas.
Entre os trabalhos de Hadid
-muitos de seus projetos ainda
não foram construídos- estão a
estação de trens de Estrasburgo
(França) e o Centro Rosenthal
para Arte Contemporânea
(EUA).
Dando sempre a impressão
de movimento, o design fluido e
orgânico de sua arquitetura
chega ao Brasil, só que por meio
da moda. A arquiteta acaba de
criar uma sandália para a grife
Melissa, lançada na semana
passada durante a São Paulo
Fashion Week.
O novo calçado, que começa a
ser vendido ainda neste semestre, será exposto na galeria Melissa, no bairro dos Jardins, em
São Paulo, juntamente com
uma réplica de quatro metros,
que estará na fachada da loja.
Mas essa não foi a primeira
incursão de Hadid no mundo
fashion. No ano passado, criou
com o estilista Karl Lagerfeld o
pavilhão de arte itinerante Mobile Art, projeto patrocinado
pela grife Chanel.
Em entrevista à Folha por e-mail, dos EUA, Hadid falou de
sua relação com a moda e dos
desafios sociais da arquitetura
contemporânea.
FOLHA - Por que decidiu fazer uma
sandália para a Melissa? A sra. é fã de
sapatos?
ZAHA HADID - Sempre mantivemos um repertório formal muito diverso e aberto -e sempre
nos interessamos por ampliar
nosso trabalho e fazer coisas diferentes em contextos diferentes. Esse foi um projeto extremamente desafiador, tanto do
ponto de vista do design quanto
técnico, já que foi nossa primeira investida no design de sapatos e a primeira vez em que a
Melissa trabalhou com uma arquiteta.
Adoro sapatos, especialmente
os saltos altos, embora não sejam muito práticos!
FOLHA - Qual é a diferença entre
projetar edifícios e objetos que estarão em contato direto com corpos
humanos?
HADID - As idéias sempre vêm
da mesma fonte -mas a criação
do projeto vai mudar de acordo
com o foco, a técnica e o tipo de
trabalho. Não creio que nossa
abordagem inicial à arquitetura,
ao design de produtos ou mesmo à moda seja tão diferente assim.
Poderíamos dizer que os designs de objetos e os projetos de
moda são fragmentos do que
poderia ocorrer em nossa arquitetura.
FOLHA - O que moda e arquitetura
têm em comum? A sra. acha que a arquitetura pode refletir ou inspirar a
moda?
HADID - A arquitetura não pode
criar cultura -tampouco o podem a moda, a ciência, a economia, a política ou mesmo as artes. Mas a arquitetura é um
componente da cultura, tão vital e indispensável quanto a
ciência, a economia, a política, a
arte e a moda.
Acho que o grau mais alto de
complexidade da sociedade em
que vivemos hoje está refletido
em sua arte, arquitetura e moda.
FOLHA - A sra. esteve no Iraque desde o início da guerra? O que pensa sobre o conflito?
HADID - Não vou ao Iraque há
muitos anos. Tenho minha opinião pessoal acerca do Iraque,
mas não gosto de falar disso publicamente.
FOLHA - A arquitetura pode ser política? De que maneira?
HADID - A partir da década de
1950 houve muitos lugares no
mundo -quer estejamos falando do Brasil, da Índia ou de Bangladesh- que conquistaram sua
independência, e todos queriam
ter uma nova imagem com uma
visão de tentar construir um novo mundo. E isso incluía a idéia
de que a arquitetura poderia
criar uma nova identidade para
o Estado.
No Brasil, as pessoas queriam
se afastar da arquitetura colonial e ir em direção a um tipo de
modernidade. A mesma coisa
aconteceu em vários pontos do
Oriente Médio, e no Iraque em
particular.
Cresci no Iraque nos anos
1960, dentro de um ambiente liberal. Era uma república nova
que procurava conquistar uma
nova identidade com a ajuda
dos tipos de prédios que eram
encomendados.
Essas idéias de mudança, libertação e liberdade que caracterizaram essa era foram cruciais para meu próprio desenvolvimento.
Embora algumas das sementes artísticas já estivessem presentes antes, o ritmo, a quantidade e a qualidade do trabalho
criativo feito nas artes, nas ciências e no design foram realmente espantosos, antecipando em
um flash intenso o que então levou outros 50 anos para se desenrolar no resto do mundo.
FOLHA - Qual é, em sua opinião, o
maior desafio que a arquitetura vai
enfrentar nas próximas décadas?
HADID - Acho que o maior desafio para o urbanismo e a arquitetura contemporâneos é a
reestruturação social fundamental que nos afasta da sociedade de massas industrial, marcada pela compartimentalização e pela segregação, levando-nos em direção a uma sociedade
aberta de especialização flexível, com fluidez e dinamismo
muito maiores nas empresas,
nas organizações governamentais e nos relacionamentos sociais.
As complexidades e o dinamismo da vida contemporânea
não podem ser transpostos para
as grades e os cubos simples da
maioria das cidades do século
20 industrial.
Agora, no século 21 digital,
com as vidas se tornando mais
flexíveis, precisamos lidar com
diagramas sociais muito mais
complexos, quando comparados aos programas sociais do século passado. Isso requer uma
nova arquitetura de fluidez e
porosidade para dar conta dessa
complexidade.
FOLHA - A sra. pensa que a arquitetura poderia ter uma participação
maior na resolução dos problemas
sociais e ambientais? Como isso poderia ser feito?
HADID - A arquitetura diz respeito à criação de ambientes
agradáveis e estimulantes para
todos os aspectos da vida. É
também um veículo com o qual,
acredito, é possível fazer frente
a problemas sociais importantes.
A civilização humana sempre
dependeu das estruturas sociais
e de sua disposição em cidades
maiores e menores para erguer
e estabilizar uma ordem social.
Mas agora temos uma população global crescente e precisamos desenvolver novas estratégias para acomodar a todos num
espaço finito.
Com relação ao design urbano e à arquitetura, os princípios
do zoneamento fundamental
precisam dar lugar a agendas de
superposição em obras porosas,
de uso misto -com muitas camadas de transportes, varejo,
unidades comerciais e residenciais em um único projeto.
A ordem serial de repetição e
segregação que marcou o século
20 industrial precisa ser substituída por sistemas que integrem e que sejam adaptáveis.
Esses sistemas altamente integrados de utilização mista requerem uma nova linguagem
arquitetônica.
Resolver essas questões sociais em cidades pode ser muito
interessante. Acho que os sistemas de transporte e infra-estrutura em muitas delas não evoluíram o suficiente para auxiliar
o progresso.
Podemos criar cidades novas
e instigantes, mas não podemos
deixar o planejamento urbano
ao acaso. Podemos desenhar o
layout da cidade de tal maneira
que ela facilite a vida de toda a
população. Precisamos de uma
estratégia.
Existem muitos arquitetos
que usam métodos sofisticados
de ar condicionado e design de
interiores para melhorar o equilíbrio ecológico de um edifício.
Já eu estou preocupada com o
ajuste de novos materiais e métodos de manufatura que sejam
relativos a todo um novo paradigma de articulação espacial e
criação de espaços.
No final, esses diferentes pólos de desenvolvimento -a sustentabilidade e a aplicabilidade
dos materiais- vão se unir novamente, trazendo soluções para grande número de problemas.
Tradução de Clara Allain.
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