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Sociedade
A jogada fatal
Caso ocorrido nos primórdios do futebol inspirou escritores como Horacio Quiroga e Eduardo Galeano
ENRIQUE VILA-MATAS
N
a década de 1990,
entabulei uma
certa amizade
com jogadores
de futebol que
liam. Com Pardeza e Pep
Guardiola [ambos foram jogadores da seleção espanhola], muito especialmente.
Eles queriam que eu lhes
falasse de literatura, e eu, em
troca, queria que me contassem segredos do futebol.
Martirizei os dois em diferentes noites, perguntando se
existiam jogadores de sucesso que, no próprio terreno do
jogo, tivessem algum dia tido
a consciência de que acabavam de fazer a melhor e última grande jogada de suas vidas. Evidentemente, era uma
pergunta que, feita em termos literários, poucos escritores aceitariam responder.
Eu, pelo menos, não conheci ninguém que se dispusesse
a reconhecer que já tinha escrito seu melhor livro.
Pardeza e Guardiola reagiram com tato e acabaram
sempre evitando responder a
minha pergunta noturna e
obsessiva.
Encontrei a resposta por
acaso, anos mais tarde, na
trágica história de Abdón
Porte, meio-campista do Nacional de Montevidéu. Rosto
afilado, cabeleira lisa, muito
alto, dotado de tenacidade
combativa. Corria o mês de
março de 1918, e no Uruguai,
naquela época, jogava-se o
melhor futebol do mundo.
Abdón Porte tinha 27 anos
e era o ídolo dos torcedores
do Nacional, embora estes
não soubessem que Abdón
sabia perfeitamente que já tinha feito a última grande jogada de sua vida.
Ele entrara num ligeiro declínio, do qual tinha consciência; já se via sendo reserva de outro meio-campista na
temporada seguinte.
Toda a torcida tricolor
(branco, azul e vermelho são
as cores do Nacional) amava
Abdón Porte, e naquele dia de
março o time derrotou o
Charley por 3 a 1 em seu estádio próprio, o Parque Central. Depois da partida, Abdón foi festejar a vitória com
seus companheiros. À uma da
madrugada, despediu-se de
todos e disse que tomaria o
trem na Estação Central.
Mas alguma coisa aconteceu quando ele ficou sozinho,
e mudou de idéia, retornando
ao estádio.
No meio da noite, foi até o
círculo central do campo, onde tinha o hábito de reinar.
Ninguém mais o iria substituir. Ali mesmo, no próprio
centro do estádio, se matou
com um tiro no coração.
Na manhã seguinte o porteiro da equipe, que foi o primeiro a entrar no estádio, encontrou o corpo do meio-campista. Junto ao revólver,
um chapéu de palha contendo duas cartas.
Em uma, ele se despedia de
seus entes queridos.
E na outra -para que não
digam que literatura e futebol
são incompatíveis-, alguns
versos copiados a mão: "Nacional, mesmo que em pó
convertido/ e em pó sempre
amante/ não esquecerei por
um instante/ o muito que tenho querido/ Adeus para
sempre".
Influências
Coração tão tricolor. Ainda
hoje, em todas as partidas disputadas no Parque Central, é
possível ver na tribuna uma
bandeira com os dizeres "Pelo sangue de Abdón". "Besteira de alegoria", escreveu alguém. "Ali onde estava, sendo
o rei do meio-campo, ele queria que o tempo se fizesse
eterno."
Besteira ou não, duas semanas depois daquele suicídio,
Horacio Quiroga [1878-1937],
contista magistral e uma das
vidas mais trágicas da literatura, baseou-se na história de
Abdón para escrever "Juan
Polti, Half-back", relato que
publicou na revista "Atlántida" em maio de 1918.
"Quando um jovem chega,
por A ou B, e sem treino prévio, a saborear esse álcool forte de machos que é a glória,
perde a cabeça irremediavelmente." Desse álcool de machos e do mítico suicídio falaria também, anos mais tarde,
o relato "Morte no Campo",
de Eduardo Galeano [em "Futebol ao Sol e à Sombra", ed.
L&PM].
No dia 13 de julho de 1930,
sem relação alguma entre o
suicídio do meio-campista e o
torneio universal que se inaugurava, foi disputada no estádio do Parque Central a primeira partida de toda a história dos Mundiais. EUA e Bélgica se enfrentaram.
Assim, pode-se dizer que a
primeira bola da primeira Copa do Mundo começou a rolar
a partir do lugar exato em que
Abdón caíra morto, a partir
daquele círculo central em
que o meio-campista decidiu
jogar sua derradeira partida,
eternizando-se no centro do
mundo, de seu mundo.
ENRIQUE VILA-MATAS é escritor espanhol,
autor de "A Viagem Vertical" (Cosac Naify).
Este texto foi publicado no "El País".
Tradução de Clara Allain .
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