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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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Treze intelectuais e artistas buscam definir conceitos-chave para a compreensão da crise ideológica por que passa o Brasil e da expectativa de conflito armado no cenário internacional

[es.quer.da, s.f]

Sérgio Lima - 27.ago.2002/Folha Imagem
O então candidato do PT à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado pelo candidato a vice, José Alencar, se encontra com José Sarney (atual presidente do Senado), em Brasília


A REVOLUÇÃO CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA, a globalização e o fim do "socialismo realmente existente" minaram o significado tradicional do termo (plural, sempre) -o que, a rigor, foi prenunciado no estranho ano de 1968. Isso porque as esquerdas, associadas na origem a lutas por mudanças no sentido da liberdade e da igualdade, tornaram-se, frequentemente, pelas vicissitudes históricas, defensoras do status quo, das desigualdades, dos privilégios e, não raro, de tiranias. Apesar dos desgastes, contudo, talvez pela força da tradição, o termo continua impregnado pelos valores e programas originários. A ver se, ante os desafios do novo século, consegue "aggiornarse" [reciclar-se", recuperando os ideais e o charme que já foram seus, ou se tornará uma relíquia datada nos museus da história.

Daniel Aarão Reis Filho é professor de história na Universidade Federal Fluminense e autor de, entre outros, "História do Marxismo no Brasil" (ed. Paz e Terra).


PREFIRO ATIVISMO, MILITÂNCIA E REBELDIA. A metáfora espacial é pálida ("lado correspondente ao do coração humano") ou negativa: "sinistra". É um desejo e como tal não pode ter como base o dever ou a disciplina. Se fosse preciso uma palavra para reconhecer a nova militância, eu escolheria "desobedientes", atividade positiva, construtiva, afetiva. A militância atual não precisa de centro, mas de redes, não precisa definir o que é "de direita" e "de esquerda", porque para os novos ativistas só existe "o lado de dentro". Não possui nenhum modelo pronto para oferecer. É um laboratório mundial. Outra característica da nova militância: fazer da resistência um ato de criação, um contrapoder. Para enfrentar um poder sem fronteiras nem limites, mutante, a nova militância terá que ser igualmente fluida e plástica. Criar novos ícones e ser pop. Conectar a gente das ruas com hackers, nômades, rebeldes. E pode até "na mão direita uma rosa levar"...

Ivana Bentes é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora, entre outros, de "Joaquim Pedro de Andrade" (ed. Relume-Dumará).


ORIGINALMENTE A PALAVRA DESIGNAVA OS ATORES QUE,durante a Revolução Francesa, defendiam uma radicalização de seus ideais de igualdade e liberdade -os jacobinos em primeiro lugar. Nos séculos seguintes esteve associada à idéia de revolução social. Hoje o termo não possui um sentido claro e unívoco na cena política internacional. Pode, no entanto, ser aplicado aos partidos e atores políticos para os quais a comunidade prevalece sobre o indivíduo na escolha das prioridades das políticas públicas. Para eles a igualdade se estende, para além de seu sentido jurídico, para o terreno das oportunidades sociais. Outra idéia importante é a de que a participação popular ampliada é considerada parte essencial da vida política.

Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, autor de "Origens do Republicanismo Moderno" (UFMG).


Quando eu = tu
é uma irmanação religiosa.
Quando eu = integrar tu
é a utopia terrena.
Quando eu = saber que existe tu
é a esquerda política.

Quando eu explora tu
... todos sabemos.

Tom Zé é músico e compositor.


(A IDÉIA DA ESQUERDA QUE CHEGA AO PODER.) É de esquerda quem luta por mais igualdade e liberdade; a longo prazo, para mim, quem luta pelo socialismo (a distinguir do comunismo), sistema em que há Estado, direito e, sem dúvida, propriedade privada; mas em que o capital é suprimido ou radicalmente neutralizado. Chegamos ao poder em democracia, o melhor e único caminho. Por isso mesmo, o mais complexo. Dois perigos: radicalismo de esquerda ou simples administração do sistema. O governo Lula tenta evitar um e outro, o que é difícil, mas possível. A esquerda mundial saúda esse governo. Há que saudá-lo; e ajudá-lo -criticando.

Ruy Fausto é professor emérito da USP e autor, entre outros livros, de "Marx - Lógica e Política" (ed. 34).


A ESQUERDA CLÁSSICA propunha o sacrifício da liberdade, da fraternidade e da prosperidade em nome de uma igualdade nivelada por baixo, mas que nem por isso se estendia à liderança revolucionária. A esquerda atual não passa de uma torcida (mal) organizada, a Mancha Vermelha, que espera, por meio da macumba, derrotar a seleção que desclassificou seu time.

Nelson Ascher é poeta, autor de "Algo de Sol", "Pomos da Discórdia" e "O Sonho da Razão" (ed.34). Como tradutor, publicou "Poesia Alheia" (Imago), entre outros.


É DE ESQUERDA QUEM NÃO PRIVILEGIA A ORDEM em qualquer circunstância, mas está disposto a arriscá-la em nome da justiça social. Quem sabe, que para reduzir a desigualdade e o privilégio, é necessário um Estado com capacidade institucional e administrativo-financeira para garantir os direitos civis (dos liberais), os direitos políticos (dos democratas) e os direitos sociais (dos socialistas). Ser de esquerda não é ser estatista, mas querer fortalecer a capacidade do Estado para que este possa corrigir as falhas do mercado nos planos social e econômico.

Luiz Carlos Bresser Pereira é professor de economia da Fundação Getúlio Vagas - SP e autor de, entre outros, "Reforma do Estado para a Cidadania" (ed. 34).


ENTENDO POR POLÍTICAS DE ESQUERDA aquelas que garantem universalmente o exercício das liberdades públicas e asseguram a elevação da renda dos pobres.

Wanderley Guilherme dos Santos é cientista político, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e autor de, entre outros, "Roteiro Bibliográfico do Pensamento Político-Social Brasileiro" (ed. UFMG).


APESAR DA GLOBALIZAÇÃO E DO COLAPSO DO SOCIALISMO, o contraste esquerda-direita continua válido, e o termo "esquerda" pode ser tomado como o favorecimento dos valores da igualdade e da solidariedade, em vez da ênfase na ordem e na eficiência da economia capitalista -que seria própria da "direita". Mas aprendemos recentemente duas coisas: (1) a igualdade supõe também a autonomia de cada um, e a expansão do Estado em nome da solidariedade tem de ser atenta aos seus riscos para a autonomia; (2) a afirmação econômica no plano transnacional é afim aos valores da direita, e a esquerda depara o desafio novo de implantar instrumentos efetivos de solidariedade também nesse plano.

Fábio Wanderley Reis é cientista político, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos.


ASSOCIADA À CAUSA REPUBLICANA e depois ao socialismo revolucionário e ao estatismo, a esquerda pode hoje definir-se como posição política defensora dos interesses dos pobres, excluídos e marginalizados, em nome dos ideais de justiça e crescente igualdade e, para ser liberal-democrática, de direitos em constante expansão ou atualização. É tanto mais consequente quanto menos voluntarista, demagógica ou populista. No Brasil é onde quase todos crêem estar, sem renunciar a posses ou privilégios.

João Almino é diplomata, diretor do Instituto Rio Branco e escritor; autor, entre outros livros, do romance "As Cinco Estações do Amor" (ed. Record).


POSIÇÃO POLÍTICA E IDEOLÓGICA vinculada às seguintes características: defesa dos direitos políticos dos indivíduos, dos direitos sociais de caráter coletivo e da possibilidade de emancipação humana; esquerda quer dizer possibilidade de o sujeito submeter a legalidade econômico-financeira às necessidades sociais; esquerda é termo avesso a qualquer tipo de messianismo ou filosofia de Estado.

Tarso Genro é secretário especial do Desenvolvimento Econômico e Social do governo Lula.


PALAVRA ATRIBUÍDA À GERAÇÃO DE 1965-1975, tendo recebido, na França, o nome de "geração de 68" e com epígonos entre nós. Saída das lutas de descolonização, eixo de referência histórica na década de 55-65, ela radicalizou os efeitos para uso interno: no apogeu da curva formalista, ela encontrou no estruturalismo sua linguagem, no anti-humanismo, sua filosofia, no esquerdismo sucessivamente remodelado, sua política. A dita geração, que teve "noviços" como Guy Sorman, filhos primogênitos como André Glucksmann e veteranos como Claude Lefort, foi a do radicalismo às avessas. Começou a carreira sob o signo da revisão; continuou sob o do "retorno à", terminou discutindo o "retorno sobre".

Mary del Priore é professora de história na USP e coordenadora do Arquivo Nacional (RJ). É autora de, entre outros, "Revisão do Paraíso" (Campus).


FAÇO MINHAS AS PALAVRAS DE WRIGTH MILLS, genial sociólogo de esquerda norte-americano (e o mundo hoje carece demais da existência de esquerdistas como ele no centro do Império). Esquerda significa "crítica estrutural e teorias e descrições da sociedade que, em um ou outro ponto, estão politicamente centradas em reivindicações e programas. Essas críticas, reivindicações, teorias e programas estão moralmente orientados pelos ideais humanistas e seculares da civilização ocidental -acima de tudo, razão, liberdade e justiça. Ser "de esquerda" significa associar a crítica cultural à política, e, as duas, às reivindicações e programas. E significa tudo isso dentro de cada país do mundo".

Francisco Alambert é doutor em história pela USP e professor de estética e história da arte na Universidade Estadual Paulista.


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