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O corpo mutante
Paula Sibilia
especial para a Folha
Uma imagem persistente chegou até nós, convertida em um
dos símbolos mais cabais da
Renascença: a estampa daquele
homem de proporções ideais desenhado
por Leonardo da Vinci. Com sua harmonia quase geométrica e sua proposta de
beleza viril, essa figura encarna a ordem
tranquilizadora de uma época que descobrira a face do seu verdadeiro amo: o
homem. Assim, confiante nos ditados da
razão e disposto a tomar o caminho seguro do aperfeiçoamento tecnocientífico, nascia o digno soberano do mundo
ocidental.
Mas isso foi há muito tempo. Prenunciada pelas inquietações e pelos desvarios românticos, a modernidade deflagrou outras forças arrasadoras. Nem
mesmo aquela silhueta estática e robusta, que desafiava toda e qualquer escuridão com sua límpida regularidade, pôde
se esquivar aos novos ventos: ela também foi tomada de assalto. Uma a uma,
todas as suas leis foram burladas; seus
firmes alicerces tremeram e se desmancharam no ar. O imaginário modernista
estilhaçou o corpo humano, jogando-o
num turbilhão de metamorfoses, fragmentações e cruzamentos espúrios. Um
projeto de decomposição que, certamente, não contemplou apenas as artes plásticas e a literatura, mas também o nível
físico e químico do próprio organismo, a
partir das perscrutações endoscópicas
promovidas pelas ciências médicas e humanas.
Junto dos restos desses corpos flagelados e esquadrinhados, os artistas do século 20 deixaram um rastro de enigmas
que ainda permanecem sem reposta e
cuja força está longe de se extinguir. Esse
é o tema do belo livro de Eliane Robert
Moraes, "O Corpo Impossível". Com
uma clareza cativante, enquanto as páginas percorrem o frondoso itinerário da
estética modernista, a autora desvela os
processos que acabaram evidenciando a
condição informe e instável da "coisa
humana".
Georges Bataille é um guia privilegiado
nessa pesquisa. Ecos de Sade, Lautréamont e Nietzsche assombram um texto
que invoca vários representantes das
vanguardas européias: artistas e pensadores que, tendo constatado a decadência do humanismo e o esmaecimento da
velha crença numa identidade fixa e estável, operaram incisões na pele e farejaram as vísceras do Homo sapiens, sem
medo da violência nem dos humores que
poderiam expelir. "Tudo acontece como
se, no mundo moderno, o dilaceramento
do homem tivesse se tornado a única saída a permitir reencontrá-lo por inteiro",
conclui a autora, "não mais na sua ilusória completude antropomórfica, mas em
seu permanente inacabamento".
Saborosa em si, esta obra pode inspirar
novas torções e desdobramentos se a sua
problemática for deslocada para o cotidiano do nosso século 21. Com a conquista do nível molecular, hoje o corpo
humano abre suas entranhas às sondagens genômicas, nanotecnológicas e ultrassonográficas. Submete-se às experiências transgênicas e se inscreve em temerários projetos de clonagem. Entra
em caleidoscópicas espirais transexuais e
se arrisca a mergulhar, ainda, nas vertigens bulímico-anoréxicas que resumem
a tentativa de afinar sua imagem teimosamente material com os tirânicos ideais
da era virtual. Apesar de toda essa profusão técnica e de toda a indagação estética
e filosófica que a vem acompanhando, a
pergunta pelo sentido parece agonizar,
mas nunca morre.
Como uma ferida aberta que não cicatriza, a questão finamente dissecada por
Eliane Robert Moraes ultrapassa o prolífico século 20 e irrompe no cenário atual,
tão insidiosa e perturbadora quanto outrora. E o corpo ainda se ergue: instável,
em constante decomposição, cada vez
mais híbrido, fragmentado, mutante.
Bestialmente impossível.
Paula Sibilia é mestre em comunicação pela Universidade Federal Fluminense e autora de "O Homem Pós-Orgânico - Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais" (ed. Relume-Dumará).
O Corpo Impossível
249 págs., R$ 35,00
de Eliane Robert Moraes. Ed. Iluminuras (r. Oscar
Freire, 1.233, CEP 01426-001, São Paulo, SP, tel.
0/xx/11/ 3068-9433).
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