|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cultura
Exposição em Nova York com 120 desenhos do artista italiano recupera o lado grotesco e a obsessão pela incompletude em sua obra
LEONARDO FRENTE E VERSO
por Robert Hughes
Ao longo de sua vida, Leonardo
da Vinci foi amaldiçoado por
uma noção de falha, incompletude e tempo perdido. Sua frase
favorita, inconscientemente repetida em
sua totalidade ou parcialmente sempre
que ele escrevia algo para ver se uma nova pena estava funcionando, era "diga-me, diga-me se algo foi terminado". E de
fato muito pouco havia sido. Seus grandes projetos para esculturas nunca eram
completados -o gigantesco modelo de
argila para um deles, que deveria celebrar seu patrono Ludovico Sforza, duque
de Milão, terminou como um morro disforme, destruído por arqueiros franceses
que ocupavam aquelas terras.
Seu grande mural comemorando a vitória florentina, a batalha de Anghiari, se
tornou uma ruína cheia de bolhas e terminou sendo pintado por cima. Pouco
sobrevive de sua "A Última Ceia" em Milão. E por aí vai seu melancólico catálogo
de ruínas e perdas.
Ele nunca encontrou tempo para editar a intrigante, mas amorfa, massa de
seus escritos em tratados coerentes. Seus
projetos de engenharia e hidráulica ou
falharam ou não foram iniciados. Poucas
de suas máquinas teriam funcionado
também e, é claro, os famosos "ornitópteros", helicópteros e planadores que fizeram dele, aos olhos de uma geração
mais velha, uma espécie de Orville
Wright do Quattrocento, nunca se elevaram um centímetro no ar.
Engenhosidade
Provavelmente
nem mesmo os tanques movidos a manivela que ele esperava que se arrastassem como letais caracóis pelos campos
do norte da Itália teriam machucado
qualquer pessoa, isso assumindo que
seus ocupantes cansados e suados conseguissem fazer com que suas rodas girassem, o que está além do provável.
Nós nos lembramos de Leonardo como pintor, desenhista, escultor, arquiteto e cientista. Mesmo assim, a julgar pela
carta que ele enviou para Sforza se autopromovendo em 1481, ele não via suas
habilidades dessa forma. Antes de mais
nada, ele listou sua engenhosidade estratégica: ele podia projetar pontes móveis,
drenar fossos, bombardear fortalezas,
projetar e construir canhões de cerco, fazer barcos à prova de fogo e assim por
diante. Apenas lá pelo décimo item, o último de sua lista, ele chega a dizer que
também na pintura ele podia "fazer de
tudo tão bem quanto qualquer outra
pessoa". Deve ter havido uma razão para
isso, já que ser um engenheiro militar devia ser provavelmente mais lucrativo do
que ser um pintor, mas ainda assim essa
imagem é muitíssimo diferente da do esteta que nós vemos hoje em Leonardo.
Três coisas, no entanto, podem ser ditas sem hesitação sobre Leonardo. A primeira é que ele não é um "homem da Renascença". Ele não era típico de seu tempo. Muitos artistas renascentistas trabalhavam, como Leonardo, em uma ampla
variedade de meios: desenho, pintura,
escultura, arquitetura e assim por diante.
Nenhum, entretanto, nem mesmo o
grande Leon Battista Alberti, tinha a impressionante e insaciável curiosidade de
Leonardo sobre a composição e as leis
que regem o mundo físico ou despendia
tanto tempo e energia especulando a respeito delas.
A segunda coisa é, obviamente, que ele
era capaz de desenhar como um anjo. A
idéia de que ele era "o maior" desenhista
italiano de seu tempo (nascido em 1452,
ele morreu com uma idade considerável,
no exílio na França, em 1519) é essencialmente sem sentido, porque o final do século 15 e o começo do 16 foram cheios de
espetaculares rabiscadores de papel.
Mas nem mesmo contemporâneos como Michelangelo foram capazes de ultrapassá-lo, ou mesmo de rivalizar em
base regular com ele, como mestre de
um tipo de linha expressivo e descritivo
que se vê em seus desenhos de estudos
para uma escultura equestre ou em suas
impressionantes análises anatômicas da
estrutura de ossos e músculos humanos
-embora alguns deles fossem, é claro,
artistas com objetivos bem diferentes.
Olhos inquisitivos
Isso é simplesmente um fato, e qualquer um afortunado o bastante para estar na vizinhança do
Museu Metropolitano de Arte de Nova
York [www.metmuseum.org] até 30/3
poderá averiguar prontamente. "Leonardo da Vinci - Desenhista Mestre"
abriu no dia 22 de janeiro, com quase 120
desenhos e uma pintura praticamente
inacabada, a angustiosa "São Jerônimo
Rezando no Deserto", do Vaticano.
Montada a partir de coleções vindas de
toda a Europa, Reino Unido e EUA, é
uma prodigiosa conquista em termos de
curadoria por parte de Carmen Bambach e George Goldner, curadora e presidente, respectivamente, do departamento de desenhos e gravuras do museu (não
se pode esperar nem do próprio Hércules que percorra a mostra a pé carregando seu gigantesco catálogo de quatro
quilos, mas não importa: é uma grande
adição à massa de literatura a respeito de
Leonardo, como não poderia deixar de
ser, com um peso desses).
Ele vivia o caos e o colapso social com um deleite mórbido: o fim do
mundo era o seu filme de horror privado
|
A terceira coisa é que Leonardo foi um
dos artistas menos transparentes que já
viveu e, dadas as enormes perdas e lacunas naquilo que a respeito dele sabemos,
é fútil esperar que qualquer exibição possa representar a sua totalidade. Ele era conflituoso, contraditório, incrivelmente
difícil de alcançar, de compreender. Não
é verdade, no entanto, que sua famosa
escrita de trás para a frente fosse uma
tentativa de defender os segredos de suas
pesquisas de olhos inquisitivos. Esse aspecto do "mistério" de Leonardo não é
de forma alguma um mistério, porque
ele era canhoto, e era natural para ele escrever de tal modo.
Mesmo assim, será que já houve outro
artista cuja obsessão por destruição e
apocalipse -e se tratava de uma real obsessão, não só de uma curiosidade do tipo "e se?"- coexistiu tão vividamente
com um amor por uma extrema delicadeza, por uma beleza evanescente e febril, por efeitos de elegância reconfortante? Não até o aparecimento de Leonardo
-e não após ele, somos tentados a
acrescentar. Ele vivia o caos e o colapso
social com um deleite mórbido: o fim do
mundo era o seu filme de horror privado, ou o teria sido se houvesse filmes no
século 15. Em suas descrições de catástrofes imaginadas lê-se Leonardo amontoando efeitos especiais para tornar concreto o que nem ele nem ninguém havia
visto, sua linguagem lutando para se libertar dos limites da realidade: choros,
urros, canibalismo, a fúria dos elementos, o fim do mundo.
A prosa não podia emoldurar tudo isso, então Leonardo teve de se contentar
com seus desenhos do dilúvio, pequenas
visões de destruição infinita, matéria arremessada e distendida em seus componentes através de vórtices, que eram os
símbolos dele para a energia primordial.
Por toda a mostra vê-se um domínio
absoluto dos processos de desenho: do
fazer o traçado mas também do fazer os
instrumentos de traço. No século 15 não
se ia a uma loja comprar um lápis. Era
preciso fazer o lápis de ponta de prata ou
o pedaço de carvão. Era preciso cortar a
pena e fazer a sua ponta. Tudo isso estava
ligado com a técnica de desenho e ajudava a determinar a intensidade do mesmo. Esse é um dos motivos pelos quais
os desenhos pequenos (e a maioria dos
desenhos de Leonardo era de tamanho
pequeno, em alguns casos pouco maiores do que um rascunho do tamanho de
uma unha) podem ser tão involuntariamente reveladores, como uma caligrafia.
"Evite a negação"
Há alguns temas
espetacularmente feios, como o imaginário "Busto de Homem Grotesco Voltado para a Direita". Leonardo se deliciava
com esses temas. O prazer que ele tinha
na feiúra humana era quase tão intenso
quanto o deleite que lhe rendia o espetáculo da beleza.
Certo, considerações cosméticas eram
menos importantes na Europa do século
16 do que viriam a ser quatro séculos depois. Certo, as atitudes sociais com relação aos aspectos repelentes da velhice
eram diferentes. E mesmo assim é difícil
olhar para os seus numerosos desenhos
de velhos horríveis e monstruosos -que
seriam assiduamente copiados por outros artistas (como alegoria cômica? Como homenagem? Quem sabe?) e que fariam uma aparição final durante a era vitoriana na triunfante imagem da rainha
vermelha de "Alice no País das Maravilhas"- sem ter a impressão de que a
imaginação peculiar e sádica de Leonardo está bem distante da nossa.
Ele diz "idealize o quanto quiser, mas
evite a negação". O outro lado obrigatório para a beleza ideal da Mona Lisa ou
da Cecilia Gallerani de Leonardo era a
feiúra de seus grotescos -uma feiúra
que desintegra toda possibilidade de desejo e que tem algo de zombeteiramente
demoníaco, e não apenas clínico, a seu
respeito. Ver seus desenhos grotescos
como a mera brincadeira de uma mente
manchada pelo sadismo é não entendê-los. Eles são uma parte essencial do impulso que levou Leonardo a uma ligação
com a beleza como uma espécie de princípio salvador.
Robert Hughes é crítico de arte e autor de, entre
outros, "Um Bobo em Cada Ponta" (ed. Rocco), "A
Cultura da Reclamação" e "Barcelona" (ambos pela
Companhia das Letras). Este texto foi originalmente publicado na revista "Time".
Tradução de Victor Aiello Tsu.
Texto Anterior: O sortilégio de um destino anônimo Próximo Texto: +livros: O corpo mutante Índice
|