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Dividida entre a fidelidade aos velhos princípios e a acomodação às novas circunstâncias, esquerda pós-moderna vê os interesses das classes trabalhadoras serem cooptados pela direita
O SORTILÉGIO DE UM DESTINO ANÔNIMO
por Slavoj Zizek
O melhor sinal do que está errado na ideologia
liberal predominante é o sincero horror manifestado pelos liberais a propósito dos excessos
racistas declarados. Lembre-se da conhecida
história (real) e muitas vezes contada de como, um século atrás, uma decisão da Suprema Corte dos EUA definiu como "negro" qualquer pessoa com um mínimo
de sangue afro-americano -bastava 1/64 de sua ascendência, mesmo que você parecesse totalmente branco.
O que há de errado na apaixonada repetição dessas histórias, geralmente acompanhadas por exclamações como: "Está vendo, isso foi ainda pior que os nazistas, para quem você era judeu somente se 1/4 ou mais de sua
ascendência fosse judia!"? O próprio enfoque no excesso automaticamente torna aceitável uma forma mais
"moderada" da exclusão racista -por exemplo, "apenas" 1/4 ou 1/3 de sangue afro-americano...
Em outras palavras, a razão desses "excessos", a indignação moral que eles provocam, é exatamente igual
à indignação experimentada hoje pelos bons democratas liberais quando são confrontados com o populismo
violento declaradamente racista -depois de gritar
"horrível! Que obscuro e incivilizado! Totalmente inaceitável! Uma ameaça aos nossos valores democráticos
fundamentais!", eles continuam, é claro, fazendo a mesma coisa de uma maneira mais "civilizada", o conhecido raciocínio que diz: "Mas os populistas racistas estão
manipulando preocupações legítimas das pessoas comuns, por isso temos de tomar alguma medida!".
Aí reside o verdadeiro problema de políticos como Le
Pen, na França. Uma análise mais atenta de como ele
chegou ao segundo turno das eleições presidenciais
francesas em 2002 deixa claro o verdadeiro peso da
emoção generalizada do "medo" e da "vergonha", e até
pânico, que o sucesso de Le Pen no primeiro turno gerou entre muitos democratas de esquerda.
A causa do pânico não foi a porcentagem de votos em
Le Pen em si, mas o fato de que ele ficou em segundo entre os candidatos, em vez de Jospin, o candidato "lógico" para esse lugar. O pânico foi desencadeado pelo fato
de que, na imaginação democrática dos países pluripartidaristas em que o campo político é bipolar, com dois
grandes partidos ou blocos se revezando no poder, o segundo lugar simbolicamente indica a elegibilidade de
um candidato: "Le Pen ficou em segundo" significa que
ele é considerado elegível, um candidato viável ao poder. Foi isso que perturbou o pacto silencioso das democracias liberais de hoje, que permite a liberdade política para todos... sob a condição de que um conjunto de
regras implícitas limite claramente o âmbito daqueles
que efetivamente podem ser eleitos.
Corpo estranho
Então, o que torna Le Pen inadequado para ser eleito seria simplesmente o fato de ele
ser heterogêneo para a ordem liberal-democrata, um
corpo estranho dentro dela? Existem outras coisas aí: o
infortúnio (e a função) de Le Pen foi apresentar certos
temas (a ameaça estrangeira, a necessidade de limitar a
imigração etc.) que depois foram silenciosamente adotados não apenas pelos partidos conservadores, mas até
pela política de fato dos governos "socialistas".
Hoje, a necessidade de "regulamentar" a situação dos
imigrantes etc. faz parte do consenso geral: como se viu,
Le Pen abordou e explorou problemas reais que incomodam as pessoas. A "vergonha" a respeito de Le Pen
foi portanto a vergonha que surge quando as máscaras
hipócritas são rasgadas e somos diretamente confrontados com nossa verdadeira posição.
Fatos como esses nos dão um claro indício do que a
esquerda esteve fazendo nas últimas décadas: deliberadamente seguindo o caminho de ceder, de se acomodar, de fazer os "compromissos necessários" com o inimigo declarado (da mesma maneira que a igreja teve de
realizar compromissos sobre seus fundamentos para
redefinir seu papel na sociedade secular moderna) por
meio da reconciliação dos opostos, isto é, de sua própria
posição com aquela do adversário declarado: ela defende o socialismo, mas pode endossar totalmente o thatcherismo econômico; defende a ciência, mas pode endossar totalmente o regime da diversidade de opiniões;
defende a verdadeira democracia popular, mas também pode fazer o jogo da política como espetáculo e
manobras eleitorais; defende a fidelidade aos princípios, mas pode ser totalmente pragmática; defende a liberdade de imprensa, mas pode adular e conseguir o
apoio de Rupert Murdoch [magnata mundial das comunicações]...
Ainda assim...
Nos primeiros dias de seu governo,
Tony Blair gostava de parafrasear a famosa piada do filme "A Vida de Brian", de Monty Python ("Tudo bem,
mas fora o saneamento, a medicina, a educação, o vinho, a ordem pública, a irrigação, as estradas, o sistema
de água potável e de saúde pública, o que os romanos fizeram por nós?"), para desarmar ironicamente seus críticos: "Eles traíram o socialismo. É verdade, trouxeram
maior segurança social, fizeram muito pela assistência à
saúde e pela educação etc., mas apesar disso tudo traíram o socialismo". Como está claro hoje, é sobretudo a
obversão que se aplica: "Nós continuamos socialistas. É
verdade que praticamos o thatcherismo na economia,
fizemos um acordo com Murdoch etc. etc., mas assim
mesmo continuamos socialistas".
Nos velhos tempos do século 20, grandes conservadores muitas vezes fizeram o trabalho difícil para os liberais: depois da atitude indecisa do governo socialista,
que terminou na crise global da própria república francesa, foi De Gaulle quem cortou o nó górdio dando a independência à Argélia -até Nixon, que estabeleceu relações diplomáticas com a China. Hoje o cenário oposto
é mais a regra: a nova esquerda da Terceira Via faz o trabalho para os liberais econômicos conservadores, desmontando o Estado de Bem-Estar, levando as privatizações até o fim etc. etc.
Em sua brilhante análise do imbróglio político da Revolução Francesa de 1848, Marx salientou a situação paradoxal do Partido da Ordem no governo: era a coalizão
de duas alas monarquistas (bourbônicas e orleanistas);
no entanto, como os dois partidos por definição não
eram capazes de encontrar um denominador comum
no nível do monarquismo (não se pode ser monarquista em geral, deve-se apoiar uma determinada casa real),
a única maneira de os dois se unirem era sob a bandeira
do "reino anônimo da república": a única maneira de
ser monarquista em geral é ser republicano.
E, "mutatis mutandis", não é algo semelhante que
acontece hoje? Como todos sabemos, hoje o capital está
dividido em duas facções (o capital industrial tradicional e o capital "pós-moderno" digital-informático-etc.),
e a única maneira de as duas facções encontrarem um
denominador comum é sob a bandeira do "capitalismo
anônimo da social-democracia": hoje, a única maneira
de ser capitalista em geral é ser social-democrata (da
Terceira Via).
Capital total
É assim que funciona hoje a oposição
esquerda-direita: é a nova esquerda da Terceira Via que
defende os interesses do capital em si, em sua totalidade, isto é, na relativa independência de suas facções particulares, enquanto a direita hoje como regra defende os
interesses de algum setor particular do capital, em contraste com outros setores -e é por isso que, paradoxalmente, para conseguir a maioria, ela tem de aumentar
sua base eleitoral apelando diretamente também para
determinadas partes da classe trabalhadora. Não admira, portanto, que seja principalmente nos partidos de
direita modernos que encontramos referências diretas
aos interesses da classe trabalhadora (medidas protecionistas contra a mão-de-obra estrangeira barata e as
importações baratas etc.).
No entanto a posição de condenar a esquerda pós-moderna por sua acomodação também é falsa, já que
também devemos nos fazer a evidente pergunta difícil:
qual seria efetivamente a alternativa? Se a esquerda escolhesse a atitude "de princípios" de fidelidade a seu antigo programa, simplesmente se marginalizaria. A tarefa é muito mais difícil: repensar totalmente o projeto esquerdista, além da alternativa de "acomodação às novas circunstâncias", e manter a antiga atitude.
A propósito da desintegração do socialismo estatal
duas décadas atrás, não devemos esquecer que aproximadamente na mesma época a ideologia do Estado do
Bem-Estar social-democrata ocidental também recebeu um golpe crucial e que também deixou de funcionar como o imaginário capaz de despertar a adesão coletiva apaixonada -a idéia de que "o tempo do Estado
do Bem-Estar terminou" é hoje uma sabedoria comumente aceita. O que essas duas ideologias derrotadas
compartilhavam era a idéia de que a humanidade como
sujeito coletivo tem de alguma forma a capacidade de limitar o desenvolvimento socioistórico impessoal e anônimo, de reconduzi-lo na direção desejada.
A face humana
Hoje essa idéia é rapidamente rejeitada como "ideológica" e/ou "totalitarista": o processo social é novamente visto como dominado por um
destino anônimo, que escapa ao controle social. A ascensão do capitalismo global é apresentada como um
destino contra o qual não se pode lutar -ou nos adaptamos a ele ou perderemos o passo da história e seremos esmagados. A única coisa que se pode fazer é tornar o capitalismo global o mais humano possível, lutar
pelo "capitalismo global de face humana" (em última
instância, é isso a Terceira Via -ou melhor, era).
Sempre que um projeto político toma um rumo radical, surge a chantagem inevitável: "É claro que esses objetivos são desejáveis em si; no entanto, se fizermos tudo isso, o capital internacional vai nos boicotar, o índice
de crescimento cairá etc. etc.". A barreira do som, o salto qualitativo que ocorre quando se expande a quantidade das comunidades locais para círculos sociais mais
amplos, até o próprio Estado, terá de ser rompida, e se
deverá assumir o risco de organizar círculos sociais cada vez maiores segundo as linhas da auto-organização
das comunidades marginais excluídas.
Muitos fetiches terão de ser quebrados aqui: e se o
crescimento estagnar ou até se tornar negativo? Já não
tivemos o suficiente de altos índices de crescimento cujos efeitos no corpo social foram sentidos principalmente nas novas formas de pobreza e privação? Que tal
um crescimento negativo que se traduzisse em um padrão de vida qualitativamente melhor, não superior, da
ampla camada popular? Essa teria sido uma ação na política atual -romper o sortilégio de automaticamente
endossar o esquema, romper a alternativa debilitante
"ou endossamos diretamente a globalização do mercado livre ou prometemos a fórmula mágica para comer o
bolo e guardá-lo, para combinar globalização com solidariedade social".
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia
da Universidade de Liubliana. É autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "O Mais Sublime dos Histéricos" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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