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A União Européia precisa superar o comodismo e assumir um papel de liderança
para evitar que os EUA continuem julgando ser necessário zelar pela democracia no mundo
O VÁCUO NO PODER
por Richard Rorty
O presidente George W. Bush está desesperadamente contando com que suas ameaças ou venham a levar Saddam Hussein ao exílio na
Suíça ou façam com que este seja deposto. Se
uma dessas duas alternativas vier a acontecer, o presidente Chirac e o chanceler Schroeder parecerão fracos,
e Bush entrará para a história como um sábio e corajoso
estadista que iniciou as ações efetivas e necessárias que
líderes europeus não tiveram coragem de iniciar. Se nenhuma das alternativas vier a ocorrer, Bush quase com
certeza entrará em guerra, não importando o que a Europa ou a ONU achem disso. Pois, se ele não levar a cabo
suas ameaças, terá muita dificuldade para explicar aos
eleitores norte-americanos o motivo de ter enviado tantas tropas ao Oriente Médio. Ele se emaranhou em uma
retórica que torna quase impossível para ele dizer "infelizmente a ONU não nos deixou prosseguir e portanto
estou trazendo os rapazes de volta para casa".
O fato de deixar de cumprir suas ameaças contra o
Iraque, combinado à circunstância de ter tido de retroceder em suas críticas anteriores contra a Coréia do
Norte, faria com que Bush perdesse os votos daqueles
que admiraram sua postura após o 11 de setembro. Por
outro lado, ele perderá ainda mais votos se muitos soldados norte-americanos forem mortos ou se embaixadas dos EUA em capitais árabes forem ocupadas por
turbas e os diplomatas norte-americanos forem usados
como reféns -ou se a Al Qaeda tiver sucesso em outras megaatrocidades como
resposta ao início da guerra.
A opinião pública norte-americana, incrivelmente, ainda não levou a sério a
probabilidade de que uma guerra contra
o Iraque venha a trazer dezenas de milhares de soldados norte-americanos para casa mortos, apesar de diversos generais reformados norte-americanos terem
dito à imprensa o quanto esse perigo é
real. É como se o público norte-americano assumisse que as baixas dos EUA serão tão raras desta vez como o foram durante a Guerra
do Golfo (1991).
Mas vitória rápida e indolor parece improvável, já que
Saddam pode seguir o ótimo conselho que lhe foi dado
pela imprensa ocidental e adotar o que foi chamado de a
estratégia do "cerco de Bagdá": ele pode deixar a cidade
ser circundada por tropas norte-americanas e depois
desafiá-las a avançar por ruas cheias de atiradores com
balas que atravessam coletes. Ele pode também desafiar
com segurança os EUA a bombardear por completo a
cidade, sabendo que as mortes de civis que disso resultarão farão com que os Estados Unidos pareçam vis.
Bush não pode deixar um cerco como esse durar para
sempre, mas ninguém ainda sugeriu como o presidente
poderia acabar com ele.
Ninguém deu uma explicação realmente convincente
de por que Bush se colocou nessa posição extremamente complicada, a não ser que talvez os seus conselheiros
o tenham convencido de que Saddam certamente vai
fugir no último segundo ou de que a CIA (Agência Central de Inteligência) contratou assassinos confiáveis e
bem localizados. Só que Bush colocou o mundo em
uma posição complicada. Se uma guerra no Oriente
Médio terminar somente após perdas norte-americanas maciças, sem nada parecido com o implausível Iraque democrático que Bush nos prometeu e com o
Oriente Médio em turbilhão, será difícil para o resto do
mundo ter alguma confiança que seja nos EUA.
Mas o enfraquecimento da hegemonia norte-americana dificilmente será um bem sem ressalvas. Há coisas
piores do que a arrogância, e uma delas é um vácuo de
poder. O mundo precisa tanto de policiamento quanto
de liderança, e a Rússia e a China não são líderes alternativos atraentes. As Nações Unidas precisariam ser
drasticamente transformadas para que pudessem vir a
ser úteis. A União Européia neste momento não é capaz
nem tem vontade de assumir um papel político, em vez
de econômico, no cenário mundial.
O governo Bush assume calmamente que a hegemonia norte-americana é inquestionável e que durará para
sempre, não importa o resultado da aventura no Iraque.
A incredulidade e o ultraje com que o governo Bush
saudou as recalcitrâncias francesa e alemã ilustram a
profundidade da convicção de Washington de seu direito de tomar conta das questões mundiais. Os analistas políticos europeus, no entanto, se enganam ao ver a
arrogância e a ambição imperialista como características não apenas do governo Bush, mas também dos Estados Unidos enquanto nação.
As pesquisas mostram que a parcela do público norte-americano que apoiaria a guerra com o Iraque com o
consentimento das Nações Unidas é muito maior do
que a que apoiaria a ação unilateral dos EUA. Se a esquerda norte-americana não tivesse sido fragmentada
pela candidatura de Ralph Nader à Presidência em
2000, o presidente dos Estados Unidos seria hoje um
homem que leu e ponderou sobre todos aqueles livros
que descrevem a mutação dos EUA de república em império e que sonharia com a delegação gradual do poder
norte-americano.
Mas pode haver, entretanto, um lado positivo na vitória eleitoral de um presidente republicano espantosamente reacionário, que considera a permanente hegemonia norte-americana um dado irrefutável. Pois o
comportamento de Bush pode levar a União Européia a
quebrar o seu hábito preguiçoso de assumir que os EUA
vão dispor do dinheiro e das vidas necessárias para resolver qualquer crise, e a Europa poderá sempre assistir
das laterais e deplorar o aventureirismo norte-americano. Ele pode forçar as nações européias a perceberem
que, a não ser que elas estejam dispostas a simplesmente aceitar a hegemonia dos EUA e conviver com a arrogância norte-americana, elas não podem se dar ao luxo
de ter políticas externas individuais. Apenas se a Europa
falar com uma voz una ela terá alguma chance de influenciar as questões mundiais. A guerra
no Iraque pode servir como um despertador, que diz à Europa que é mais tarde
do que ela pensa.
Parte do desdém que Washington tem
pela Europa é justificado. A Europa não
quis tomar uma atitude para acabar com
o genocídio na África e nos Bálcãs. A
União Européia não pôs em pauta nenhum projeto próprio de longo prazo
em busca de paz e segurança mundiais.
Qual é, por exemplo, a política européia com relação ao desarmamento nuclear? Será que a Europa está feliz, como o governo Bush
aparentemente está, com o mundo vivendo para sempre sob uma espada de Dâmocles nuclear? A França e a
Alemanha têm dúvidas justificáveis a respeito de uma
guerra contra o Iraque, mas seus líderes pouco disseram o que deve ser feito quando tiranos loucos brandirem armas nucleares e nutrirem terroristas.
A não ser que a Europa pare de meramente reagir, favorável ou desfavoravelmente, às iniciativas norte-americanas e comece a tomar suas próprias atitudes, seu
comportamento reforçará -e de fato justificará- a
crença de que a defesa da democracia e a resistência
contra a tirania devem continuar a ser responsabilidade
dos EUA. Se as nações européias não estão dispostas a
aceitar o que Michael Ignatieff chama de "imperialismo
gentil" dos EUA (que pode não ser gentil para sempre),
elas terão de se reunir e concordar sobre uma política
externa de longo prazo, levantar o dinheiro necessário
para agir militarmente de forma independente e demonstrar a habilidade e a vontade da União Européia
de assumir responsabilidades políticas globais.
Richard Rorty é filósofo americano, professor na Universidade Stanford e autor de, entre outros, "Para Realizar a América" (DP&A).
Tradução de Victor Aiello Tsu.
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