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"Fernando Pessoa, Resposta à Decadência", de Haquira Osakabe, percorre o
itinerário teórico do autor português para desvendar os impasses de sua obra
Alquimia da impossibilidade
Ettore Finazzi-Agrò
especial para a Folha
Sabe-se que a última conferência
de Italo Calvino para as Norton
Lectures, a sexta das "Seis Propostas para o Próximo Milênio" [Cia.
das Letras", que ele estava preparando
para apresentar na Universidade Harvard, deveria ser intitulada "Consistency". Calvino morreu antes de escrevê-la, e só sabemos que, nesse ensaio, ele
tencionava falar, sobretudo, em "Bartleby", de Melville.
Chamado a resenhar o livro que Haquira Osakabe acaba de publicar ["Fernando Pessoa, Resposta à Decadência]",
essa palavra, "consistency", surgiu aos
poucos e se tornou, ao longo das páginas,
uma chave de leitura importante e por
duas razões, cuja lógica quero tentar aqui
reconstruir para mim mesmo e para os
leitores.
A primeira, e talvez a mais superficial,
tem a ver com o significado primeiro do
termo inglês, remetendo para a nossa
consistência: isto é, a análise que Osakabe faz da trajetória teórica e poética de
Pessoa tem uma indubitável solidez. Caráter, este, que se pode encontrar em toda a produção crítica dele, sempre fortemente vinculada a uma leitura aproximada, a uma análise atenta do discurso,
e ressentindo, nessa perspectiva, do trabalho de aula, do qual o discurso vem e
para o qual ele se dirige (cito, como
exemplo, apenas o seu volume que se
tornou um clássico, "Argumentação e
Discurso Político" [ed. Martins Fontes],
publicado em 1979).
Sentido metafórico
Quero dizer
que Osakabe é antes de tudo um professor -definição que foi perdendo, nos
últimos anos e em quase todos os países,
a sua "aura", mas que com ele readquire
o seu significado mais pleno e positivo:
de trabalho hermenêutico feito, primeiro, individualmente (sobre as próprias
interpretações, sobre as intuições e as
dúvidas acerca de um autor ou de um período) e levado adiante, depois, em conjunto com os outros (e não se esqueça de
que o verbo "compreender" tem, justamente, inscrito na origem esse sentido de
"tomar com").
Se toda leitura crítica, enfim, é fatalmente um caminho em volta e/ou através dos textos, aquilo que a torna fundamental e concreta, apagando as margens
do arbitrário e do aleatório, é exatamente
o fato de ela ser submetida a uma confrontação contínua com outras leituras,
até chegar a um grau de "exatidão" (outro termo calviniano) e de "consistência"
que a tornam indispensável. Não por
acaso, na apresentação, o autor, além de
listar as suas dívidas em relação a outras
leituras e a outros leitores de Pessoa, coloca no mesmo plano "a presença constante de um grupo de alunos" com quem
discutiu, ao longo dos anos, as suas opiniões e as suas teorias sobre o escritor
português.
Caráter orgânico
A palavra "consistency" tem, todavia, uma outra acepção que gostaria de aplicar ao livro de
Osakabe: isto é, o significado de "harmony, logical connection" (estou citando o dicionário "Webster's"). Acepção,
esta, que podemos ainda incluir no âmbito da nossa "consistência", mas que fica, nas línguas neolatinas, quase num
plano segundo e secundário, diria quase
metafórico, em relação ao significado
principal. Não sei em que sentido Italo
Calvino pretendia estudar a "consistência", mas gostaria que fosse sobretudo
neste: na capacidade que um autor tem
de combinar e conectar logicamente as
diversas partes da sua obra.
O livro de Osakabe possui, de fato,
também esse caráter orgânico, isto é, encerra e, ao mesmo tempo, manifesta
uma harmonia que não vem da acumulação de argumentos, mas da disposição
ordenada e consequencial das razões que
levaram Pessoa a escrever aquilo que escreveu. E isso já a partir do título, colocando a obra do escritor português não
tanto como afirmação de um Eu dilacerado quanto, justamente, como "resposta" a uma situação histórica específica,
ou seja, como tentativa de encontrar
uma possível cura à decadência que afetava a cultura portuguesa (e européia) na
passagem entre o século 19 e o 20 -de
que a dilaceração do Eu é apenas uma
manifestação.
Por isso Osakabe considera fundamental, na construção da poética pessoana, a referência a Antero de Quental,
autor, também ele, à procura constante
de uma solução à "Krisis" finissecular,
mas que acabou suspenso numa contradição sem saída, colocado num "cruzamento de impasses" a que o tinha levado
"um processo de análise tão vertiginoso"
a ponto de sobrepor, numa indiferença
paradoxal e trágica, o sim e o não, o início e o fim, o tudo e o nada (pág. 56).
A genealogia que liga essa tentativa extrema de pensar em conjunto noções
contraditórias com uma obra toda ela
empenhada em dizer -exorcizando-a
na linguagem- essa "impossibilidade"
é um dos achados mais consistentes do
estudo de Haquira Osakabe, em que se
reconstrói, aos poucos, com o vagar que
a lógica harmônica impõe, o itinerário
teórico pessoano, dividido entre uma
primeira fase -que ele coloca sob a
chancela do "neopaganismo"- e uma
segunda -que ele põe no signo da "alquimia" (ou, como o próprio Pessoa às
vezes a define, do "Paganismo Superior").
Degraus
Dois termos, estes, que circulam frequentemente tanto no discurso
pessoano quanto no metadiscurso crítico, mas que, no caso presente, não são
tomados tanto como chaves de uma interpretação exclusiva e globalizante
quanto como degraus de uma procura
-de uma "resposta"- decisiva à crise
histórico-cultural já assinalada e, por assim dizer, ocupada pela obra anteriana.
Não vou -não posso, aliás-, no breve espaço de que disponho, acompanhar
por completo a parábola lógica que sustenta o livro de Osakabe, mas quero me
deter na conclusão do seu percurso, que,
sendo consistente, não pode senão desembocar numa questão. O último capítulo é, com efeito, intitulado: "Uma pergunta para concluir: Serei eu mesmo um
Deus?". O processo racional deve ser, no
seu êxito, interrogativo, assim como o é,
afinal, a lógica pessoana montada como
uma resposta, mas acabando na forma
de uma pergunta irrespondível.
De fato, chegado ao fim do seu caminho, que o leva a transitar do paganismo
para um misticismo sem Deus, o escritor
português se acha apenas rodeado pelo
"mistério" e habitado pelo "horror", isto
é, por aquele "sentimento sinistro provado (...) diante do simples e terrível fato
de que, atingir o essencial, o segredo, a
origem de tudo, é um atingir o aquém
desse essencial, na fronteira do abismo
em que se perdem a inteligência e o seu
sujeito" (pág. 208).
Zona dúbia
Podemos dizer, então,
que, como já Antero, também Pessoa depara um "cruzamento de impasses", visto que não consegue sair da contradição
entre realidade e sonho, entre misticismo e paganismo, entre o deus e o diabo,
entre o mundo supernal e o infernal,
descobrindo, porém, nessa impossibilidade o seu papel de intermediário, "angélico" ou "demiúrgico", que o torna
dáimon, isto é, artífice perplexo de uma
dimensão medial, de uma "realidade de
sonho" (pág. 211).
Nesse sentido, a "consistência", tanto
da obra de Fernando Pessoa quanto da
leitura que Osakabe faz dela, reside justamente nesse habitar um entremeio,
nesse dar voz àquela condição virtual,
suspensa entre o ser e o não-ser, entre o
sim e o não, que, talvez de modo não casual, encontra a sua fórmula mais contundente na famosa, enigmática frase "I
would prefer not to", tantas vezes pronunciada por Bartleby, o escrivão de que
tencionava falar Italo Calvino.
Pode-se quiçá supor, então, que aquilo
que o escritor italiano queria mostrar no
seu último "memo" fosse -justamente
como a "consistency"- apenas a condição sólida e ao mesmo tempo harmônica
que se desenha nessa hesitação: na zona
dúbia, enfim, nevoenta e virtual explorada também pela poesia pessoana que se
abre e se alastra no interior de qualquer
antítese.
Ettore Finazzi-Agrò é professor titular de literaturas brasileira e portuguesa na Universidade de
Roma/La Sapienza, autor de "Um Lugar do Tamanho do Mundo" (ed. UFMG), sobre Guimarães Rosa, e "O Álibi Infinito" (ed. IN-CM, Lisboa), sobre
Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa, Resposta à Decadência 220 págs., R$ 25,00 de Haquira Osakabe. Criar Edições (r. Nunes Machado, 860, 1º andar, conj. 3., CEP 80250-000, Curitiba, PR, tel. 0/xx/41/ 233-0662).
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