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Nos seis contos reunidos em "O Assassinato e Outras Histórias", o russo
Tchekhov se afasta do tom humorístico e aprofunda sua poética da contenção
Luz indireta sobre o homem supérfluo
Reprodução
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Tchekhov e Górki em Ialta (sul da Ucrânia) em foto tirada entre 1900 e 1901 |
Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha
Avesso ao dogmatismo e à prolixidade, Anton Tchekhov (1860-1904) respondia na mosca às cobranças por um engajamento
político inequívoco: da arte se deve esperar o desenho do problema, nunca sua
solução. No panorama das letras russas
entre os séculos 19 e 20, em que os diagnósticos sociais e a prescrição ideológica
eram a norma, notabilizou-se pela narrativa breve, pautada no respeito intransigente à singularidade concreta. Foi um
mestre numa escrita que obtém seus
maiores efeitos na iluminação indireta,
discreta e inesperada, dos detalhes cotidianos, líricos ou sórdidos.
O que passaria por trivial e secundário
assume, em suas histórias, o primeiro
plano, sem ostentação ou banda de música, nem eufemismo ou meio-tom.
Mulheres entediadas
Contenção é uma palavra-chave na poética tchekhoviana. Está por trás de sua atração pelo conto, seu asco ao emocionalismo adjetivante, seu apreço pelos finais em surdina ou em aberto, anticlimáticos. A objetividade que buscava traduz-se em denúncia contra qualquer contaminação do
enredo pelos valores do autor, violência
simplificadora e caminho seguro ao caricato. Tchekhov construía suas criaturas,
russas até a medula, combinando distanciamento emocional e simpatia linguística, fossem elas intelectuais em crise, mulheres entediadas, autoridades de província ou mujiques embrutecidos.
Ao deslocar o foco narrativo para junto
dessas consciências individuais, procurava fazer justiça a sua identidade única e
esforçava-se por mimetizar suas peculiaridades expressivas. Cala o narrador,
mas o personagem fala, com voz própria
recriada.
Os contos alongados, novelas ou quase, que compõem "O Assassinato e Outras Histórias", traduzidos e apresentados por Rubens Figueiredo, foram escritos na segunda metade dos anos 1890 (a
exceção é "O Professor de Letras", 1894).
Da ótima seleção, emerge o autor de "Tio
Vânia" dos últimos anos, no exercício
pleno de sua arte, longe do sarcasmo dos
contos curtos, humorísticos, publicados
sob pseudônimo, em revistas, na década
anterior. Se o prometido romance que,
volta e meia, ensaiava não se concretizou, estas histórias nos mostram um
Tchekhov trabalhando mais extensivamente enredo e personagens, ocupando-se à sua maneira (ou seja, a partir da
ocorrência singular e concreta, sem recorrer a grandes sínteses) de temas candentes e polêmicos, como a religião e a
situação do camponês russo.
Os leitores de "O Professor de Letras" e
"Iônitch" perceberão as razões que levaram o autor que morreu tão cedo a influenciar decisivamente o destino do
conto moderno. No primeiro, um jovem
ambicioso, com pretensões intelectuais,
apaixona-se pela bela filha de família
bem-posta, faz-lhe a corte, é correspondido, casa-se. Registra num diário a felicidade de mel dos primeiros tempos, instaura-se uma confortável rotina doméstica, mansa e frouxa, até que um comentário ao acaso numa mesa de jogo (perde
tranquilo o que não lhe faz falta) dispara
o alarme: o professor percebe-se homem
supérfluo, preso a uma armadilha doméstica de mediocridade duradoura.
Efeitos colaterais
"Iônitch", por
sua vez, traz a mesma história de corte e
ilusões desfeitas por outras linhas tortas:
rejeitado por moça burguesa que quer
ser atriz, um jovem médico faz carreira
bem-sucedida, enriquecendo a olhos vistos, com os efeitos colaterais indesejáveis
da rabugice e da obesidade; quando,
anos depois, volta a ver a ex-namorada, a
comoção é apenas dela, inspirando-lhe
indiferença e alívio.
A soma final, contudo, é a mesma: ter
fugido às amarras da vida doméstica resultou em igual decepção, beco sem saída para ele e para ela. Enredos como esses -banais, evanescentes, implosivos,
distendidos, mas de extremo impacto-
tornaram Tchekhov referência incontornável entre os contistas do século 20.
Em "O Assassinato", "No Fundo do
Barranco" e "Os Mujiques", o neto de
servos mergulha na Rússia profunda,
longe das cidades, dominada pela escassez e pela exploração, onde o mais forte
prevalece em degradadas relações humanas. Ainda que Tchekhov esteja longe
do naturalismo francês, a devoção à
ciência do médico cobra o preço do literato, não de todo indiferente ao darwinismo contemporâneo.
Mas nem por isso ele se rendeu aos esquemas de compreensão da realidade.
Alternando momentos do máximo vitalismo (festas, danças, banhos de rio) e de
desalento consumado (o torpor da bebida, as surras, os logros), desdobrando-se
sob a marca da crueldade (a humilhação,
o homicídio) e da indiferença moral, estas novelas garantem ao caprichado volume, desde já, um lugar de merecido
destaque na boa recepção brasileira da
obra de Tchekhov.
Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett - O Silêncio Possível" (Ateliê) e "O Engenheiro Noturno - A
Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).
O Assassinato e Outras Histórias
263 págs., R$ 37,00
de Anton Tchekhov. Trad. de Rubens Figueiredo.
Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar,
CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/11/3218-1444).
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