São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002 |
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A IMPORTÂNCIA DE SER PRUDENTE
por Alcir Pécora
O andamento que Sérgio Buarque dá à questão é duplamente importante. Primeiro, enquanto crítica da história ou da análise literária, aqui mapeadas como domínios que demandam uma metodologia que não pode ignorar os limites rigorosamente históricos das interpretações e de seus objetos. Segundo, enquanto construção verossímil do quadro de valores vigente no século 17 ibérico, pois a referência à categoria da prudência engata uma série estratégica de peças no "puzzle" dos argumentos eficazes do período, como o da dissimulação civil e o da razão de Estado, apropriações históricas da "phronesis" aristotélica. Isso basta quanto a Vieira e ao século 17. Passemos ao 18. Aqui, a dissonância de Sérgio Buarque em relação aos lugares da tradição crítica que ata românticos e modernistas é patente, à medida que, ao contrário da posição comum a ambos, ressalta as diferenças entre as tendências individualizadoras e realistas cultivadas pelos românticos e aquelas prezadas pelos árcades. Por exemplo, em relação a Gonzaga, Sérgio Buarque observa que a sua concepção de Marília nada tem de realista ou particular, mas sim de típico e de ideal, a prevalecer "em todas as circunstâncias sobre o individual, o contingente, o sensível". Numa passagem elucidativa a propósito da aparente contradição dos "retratos de Marília", descrita às vezes como loira, outras, como morena, Sérgio Buarque anota que a "contradição" tão observada pela crítica posterior deixaria perfeitamente "indiferentes ou insensíveis os contemporâneos de Gonzaga". As supostas notas realistas dos árcades, muito valorizadas pelos pós-românticos, não passam, para Sérgio Buarque, de "convenção e afetação bucólica", índice da "adesão a um ideal de vida eternamente válido" e do desejo de "restaurar na esfera da arte uma espécie de paraíso perdido". Assim Sérgio Buarque se resguarda das leituras teleológicas da poesia setecentista e o faz de forma especialmente interessante ao considerar os seus modelos internacionais, sobretudo os italianos, permitindo-lhe adotar uma crítica convincente do vocabulário usualmente empregado no tratamento dos árcades. Em se tratando destes, noções como as de "livre inspiração" e de "espontaneidade" teriam de ser abandonadas em favor de outras, como as de "estudo" e "esforço"; o levantamento de "valores universais" deveria prevalecer sobre o de "verdades particulares, únicas, inefáveis"; nenhuma relevância deveria ser atribuída à idéia de "personalidade" e mesmo à concepção de obras "originais" em contraposição à decidida recriação de matrizes da tradição antiga. Tal ajuste de conceitos impediria igualmente que se entendesse a produção arcádica mineira como associada a algum tipo de "sentimento revolucionário" ou de "brasilidade" única e original; os seus melhores versos, no máximo, trariam reivindicações "paroquialistas" ou "localistas", nas quais seria aleatório pleitear traços nacionalistas: "E não será deformar o passado chamar de impulso autonômico certas manifestações de incipiente nativismo que encontramos em toda a nossa história colonial? Manifestações que, em geral, não exprimem mais que uma fidelidade instintiva ao próprio lar, à parentela, à vizinhança, à terra natal, e que têm seu correlativo necessário na aversão ao adventício, ao que fala língua diversa ou pronuncia diversamente a mesma língua, ao que tem costumes, preconceitos e -quem sabe?- credos exóticos". Ou seja, nos termos aplicados por Sérgio Buarque, seria um erro de perspectiva pretender equiparar tal "fidelidade ao pequeno rincão" ou "patriotismo de espécie paroquial" ao que o século 19 chamaria, com sentido muito diverso, de "consciência nacional". Avançando o cerco às posições românticas, tantas vezes adotadas pelos modernistas, que se sentiram tentados a fincar o seu padrão de Brasil em Minas Gerais, Sérgio Buarque observa que a literatura brasileira dos tempos coloniais é "prolongamento da literatura portuguesa" e, enquanto tal, "não pode ser caprichosamente separada do conjunto a que pertence". Nesse ponto, a meu ver, fica especialmente claro por que as posições de Sérgio Buarque se mostram tão frutíferas para historiadores e críticos desapegados de um projeto nacionalista para o passado, mas interessados em notar diferenças importantes atuando nos regimes interpretativos das obras produzidas em tempos diferentes. Os dois exemplos levantados aqui, Vieira e os árcades, ajudam a realçar o mesmo: a preocupação de Sérgio Buarque em evitar que a mão pesada do presente deforme -é o termo que usa- as delicadas provas que restam das diferenças do passado, sobretudo as traduzidas nas obras literárias. Vem daí o meu palpite bom sobre a alta consideração de que goza Sérgio Buarque atualmente. Num momento em que se foram as certezas dos paradigmas revolucionários do século 19 e, com elas, a naturalização das teorias e a absolutização do espírito no presente como prova essencial da perspectiva histórica, as muitas faces de um passado não mais infantilizado ou preparatório, não mais ontologicamente subsidiado pelo que o ultrapassa, surgem com uma complexidade estranha, esquisita, que a pecha de ideológica ou de irracional não resolve mais nem sequer neutraliza. Em época assim insegura, quando o passado parece sacudir-se e oferecer alternativas distintas das que pareciam óbvias para os futuros acordos a ser arbitrados, intelectuais como Sérgio Buarque, atentos às diferenças dos tempos e dos objetos, sem tratar logo de canibalizá-los e orgulhar-se disso, acabam sendo relembrados e legitimamente comemorados. Essa a hipótese boa, eu havia dito. Agora, a menos. Nela, o atual prestígio de Sérgio Buarque pouco tem a ver com o desejo de discutir seriamente as suas idéias, que é afinal a verdadeira homenagem, senão a única, que pode dignificar o intelectual. O que contaria seria mais a sua função de "auctoritas", como título legitimador de discursos, a que passaria a ter direito por simples envelhecimento e institucionalização de suas idéias. Portanto, Sérgio Buarque, assim, celebrar-se-ia como se celebra uma instituição de prestígio e, na melhor das hipóteses, uma instituição genericamente sadia como a das ciências humanas ou a da universidade. As idéias estariam aposentadas, mas bem viva a instituição. É possível? Nesse caso, se não temos brasilidade precoce, temos ao menos longa duração: estaríamos funcionando na mesma base da tradição e da autoridade que Sérgio Buarque apontava como regimento da prudência em Vieira. Mas, sendo assim, ainda teríamos direito de atribuir final feliz à história dos seus primeiros cem anos? Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp) e "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp). Texto Anterior: Acervo da Unicamp esconde obra inédita Próximo Texto: + obras Índice |
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