São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002 |
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TESTEMUNHA OCULAR
por Maria Odila Leite da Silva Dias
Em 1926, escreveu na "Revista do Brasil" um de seus artigos mais polêmicos: "O Lado Oposto e Outros Lados". Expunha um aspecto corajoso e combativo de sua personalidade. Rompia com Graça Aranha, Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida. As brigas com os companheiros o levaram a passar, em 1927, por uma profunda crise existencial. Partiu para Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, onde permaneceu cerca de um ano dirigindo o pequeno jornal local chamado "O Progresso". Em 1928, retomou a tradução de notícias do estrangeiro, dessa vez para a United Press. Múcio Leão levou-o ao "Jornal do Brasil", onde passou a escrever uma crônica diária e sem assinatura intitulada "O Dia dos Senadores". Ali conviveu com Barbosa Lima Sobrinho, Aníbal Freire e João Ribeiro, pelo qual tinha imensa admiração. Entrevistou personalidades literárias de vanguarda, como Blaise Cendrars, Pirandello e Marinetti. Em 1929, como correspondente dos "Diários Associados" em Berlim, publicou uma conversa com Thomas Mann. Também realizou entrevistas com figuras do mundo político, como Henri Guibeaux -militante comunista refugiado na Alemanha em virtude de resistência à perseguição de Stálin contra Trótski- que acabava de publicar um livro sobre Lênin. Como correspondente internacional de "O Jornal", escreveu reportagens sobre as perspectivas do comércio do café brasileiro no mercado alemão. Visitou a exposição de Poznam, incumbido como jornalista de explorar as possibilidades de o Brasil manter relações comerciais com a Polônia, que ressurgia como país. Crítico da cultura Em julho de 1930, assistiu em Berlim à chegada do zepelim pilotado pelo problemático e desbocado dr. Hugo Eckener, com quem fez uma entrevista tumultuada. "A cidade blasée por excelência foi sacudida por um desses frêmitos de emoção quase convulsiva, que estamos habituados a conhecer em nossas terras latinas e tropicais", escreveu em "O Jornal" (18/7/1930). Estava em Berlim quando os nazistas ganharam pela primeira vez as eleições, em setembro de 1930. Fez diversas reportagens sobre a crise financeira que o país atravessava. As atividades de sobrevivência também se impuseram a Sérgio Buarque em Berlim, onde logo foi obrigado a procurar bicos e trabalhos extras para se manter. Um desses bicos consistia em traduzir as legendas de filmes alemães para o português. Foi assim que traduziu o "Anjo Azul" (1930), do diretor Joseph von Sternberg, com Marlene Dietrich. Outro trabalho que assumiu foi o de redator da revista bilíngue "Duco", que se especializava em matérias sobre o comércio entre a Alemanha e o Brasil. Não deixou de comentar a crise ocasionada, logo após sua chegada a Berlim, pela introdução do cinema falado, em 1929. As bases técnicas e financeiras para a fabricação do "ton-film" eram tão precárias na Alemanha que o cinema nacional entrou na maior crise. Ao primeiro impacto da chegada na Alemanha, o jornalista se transformava em crítico da cultura. Sentira o desafio cultural da terra estranha. "Seria preciso alcançar a virtude admirável do silêncio, tão difícil entre os povos de estilo latino, amigos de criticar e de sorrir" ("O Jornal", 15/9/1929). Não subestimava a diversidade histórica do país, que via dividido em temporalidades muito diferenciadas. "Munique, muito 1875, Hamburgo e os centros hanseáticos, muito 1900, e Berlim, muito, mas muito 1920 ("O Jornal", 16/11/1930). Como jornalista, se esforçou por interpretar essas diferenças e suas nuanças. Em suas reportagens, comparou a diferença entre a visão de mundo dos franceses e a dos alemães. Os latinos se apegavam a construções rígidas e irredutíveis de pensamento, ao passo que os alemães se caracterizavam por uma notável fluidez da cultura, "que se manifestava justamente por uma sensível resistência a qualquer definição, tudo quanto se poderia exprimir pela música, essa flor do espírito germânico". Muitos anos mais tarde, em 1979, referia-se àquela fase de atividades jornalísticas como o serviço militar graças ao qual pôde adquirir um estilo conciso e razoavelmente espontâneo. Foi por meio dos afazeres de jornalista, escrevia ele, que conseguira uma linguagem mais precisa e expressiva do que propriamente bonita. "Ou, como se prefira, de uma linguagem onde a boniteza da forma, se ocorresse, fosse proveniente apenas da claridade maior introduzida nela pela feliz expressão" ("Tentativas de Mitologia", pág. 20). Em 1935, recordou num artigo para a "Folha de Minas" a impressão deixada nele pela fisionomia de Thomas Mann e o sentimento que guardou de que as forças de dissonância pressentida em sua fisionomia tinham a ver com o tema da desagregação, que percorria seus romances. Referia-se ao vislumbre de uma dissonância em sua personalidade que chegava a ser tumultuosa e trágica -e que Sérgio Buarque não deixava de associar à sua ascendência brasileira. O modo como expressava a intuição das forças que permeavam o estilo do romancista alemão já demonstrava cabalmente estar senhor das artes pelas quais batalhara longamente na imprensa. Maria Odila Leite da Silva Dias é professora do programa de pós-graduação em história da Pontifícia Universidade Católica, em São Paulo, e autora de "Quotidiano e Poder em São Paulo no Século 19"(ed. Brasiliense). Texto Anterior: Cartas Próximo Texto: Adagio ma non troppo Índice |
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