São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002 |
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ADAGIO MA NON TROPPO
por Antonio Arnoni Prado
Daí ter redefinido a persistência dos motivos hispânicos nas letras do Brasil Colônia não mais como uma imposição inevitável do critério político elaborado por Sílvio Romero, mas sim como um efeito recíproco que se integra à própria superação de sua voga, revelada de modo pioneiro quando Sérgio Buarque os identifica no interior das influências italianas da Arcádia. Aqui, mais do que um traço de expressão nacionalista a definir a rotação dos estilos, o declínio do espanholismo se entremescla à expressão simultânea da realidade da Arcádia, naquele sentido original de que os árcades "tinham surgido para combater o mau gosto nas letras", um mau gosto que para os portugueses da época -nos diz ele- era sinônimo do mesmo gosto espanhol que a sua crítica acabaria pela primeira vez integrando aos enigmas góticos de um Silva Alvarenga, aos melodramas de Metastasio aqui parodiados por Cláudio Manuel da Costa e José Basílio da Gama, às ressonâncias de Paulo Rolli no esquema estrófico de Tomás Antônio Gonzaga e à autonomia da concepção do "Uraguai" em relação aos moldes camonianos. Mais importante do que isso, no entanto, é perceber que esse movimento circular de integração e contraste, ao mesmo tempo em que desarticula a rigidez cientificista da velha crítica, alinha-se à visão mais ampla que antecipou, em "Raízes do Brasil" sobretudo, as últimas ressonâncias do "lento cataclismo" em que veio se desenhando "o aniquilamento das raízes ibéricas da nossa cultura", à busca de um estilo novo cada vez mais distante das formas tradicionais que definiram a nossa condição de país dependente. A melhor forma de compreender a extensão dessa ruptura é percorrer o movimento simultâneo dos ciclos que se sucedem e ver como neles a literatura dos árcades brasileiros reaviva, a partir de Sérgio Buarque, um contraste emblemático com a "visão singela e tranquila da América Portuguesa" que vinha dos primeiros cronistas e que um crítico e historiador como Manuel de Oliveira Lima reintegra a um patrimônio espiritual comum sob a égide acadêmica das raízes latinas do nosso iberismo. Ao contrário de Sérgio Buarque, que, na, esteira do modernismo, ampliava para os outros países da América Latina "a dissolução irrevogável das nossas sobrevivências arcaicas", Oliveira Lima faz recuar para a monarquia portuguesa o fato de o Brasil ter escapado das sérias crises que acometeram os países vizinhos, graças "à personificação da autoridade sem tirania, da força sem violência, da moralidade sem hipocrisia e da liberdade sem indisciplina". Em seu livro "Aspectos da Literatura Colonial Brasileira", por exemplo, os poetas de Minas aparecem como "os mais ilustres da língua portuguesa" (a metrópole não poderia se orgulhar de ter outros semelhantes), apesar da ressalva de que a expressão "Escola Mineira" foi artificialmente construída para designar uma plêiade de escritores que, a seu ver, "não fundou absolutamente uma escola e não se organizou em nenhuma Arcádia de além-mar", impondo-se apenas pelo talento individual que se nutriu do patrimônio comum haurido nas reminiscências clássicas que fazem de Claudio Manuel da Costa um neoclássico europeu e de Gonzaga um lírico que se antecipa ao romantismo da metrópole, ficando para Silva Alvarenga a síntese de um estilo que se fecha sobre si mesmo à medida que resume "a forma excelente de Cláudio, o estremecimento amoroso de Gonzaga, a suntuosidade altaneira de Alvarenga Peixoto", acrescentando a todos esses atributos retóricos "um colorido mais particularista que jeitosamente sabe combinar com aqueles predicados gerais". É no horizonte dessa dicção palavrosa, que define a continuidade da literatura brasileira como "um reflexo do pensamento europeu" e elege a Academia Brasileira como sentinela avançada da "árvore latina sob a luz dos trópicos", que a crítica renovadora de Sérgio Buarque produz os efeitos mais devastadores, fragmentando a linearidade simbólica da colônia e abrindo-a para o jogo livre das dissonâncias que ele depois harmoniza sob um código provisório como nas melhores páginas que escreveu sobre o modernismo. Antonio Arnoni Prado é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas, organizador de "O Espírito e a Letra - Estudos de Crítica Literária" (1996), de Sérgio Buarque de Holanda, e "fellow" da Fundação Guggenheim em pesquisa na Oliveira Lima Library, na Universidade Católica da América, em Washington. Texto Anterior: Testemunha ocular Próximo Texto: Historiador é tema de livros, documentários, mostras e seminários Índice |
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