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+ Cultura
O terrível Godard
Publicado na Inglaterra, "Tudo É Cinema" enfoca a vida do grande nome da nouvelle vague, da consagração
nos anos 60 à relação tensa com Truffaut e os dias atuais
NIGEL ANDREWS
Q
uem quer saber de
um enfant terrible
quando ele envelhece? Essa é a
questão que ocupa
posição central na volumosa
biografia de Jean-Luc Godard
por Richard Brody -"Everything Is Cinema - The Professional Life of Jean-Luc Godard" [Tudo É Cinema - A Vida
Profissional de Jean-Luc Godard, ed. Faber and Faber, 720
págs., 30, R$ 92].
Como se os desafios que cada
filme de Godard apresenta individualmente não fossem suficientes -as estruturas em
forma livre, a prolixidade de
alusões, a fertilização cruzada
de gêneros-, há um enigma
maior em sua carreira e em sua
trajetória.
Quanto mais tempo Godard
persiste em seu trabalho, tanto
menos o público parece saber
como defini-lo. As delinqüências artísticas que o público
costumava amar no jovem rebelde parecem menos adoráveis quando o rebelde envelhece, se torna ranzinza e, em filmes recentes como "Nossa
Música" e "Elogio ao Amor",
parece cada vez mais obscuro.
O que exatamente aconteceu
com o criador de "Acossado",
filme que rejuvenesceu o cinema europeu dos anos 60 com
seu tratamento anárquico e revertido de todos os temas? Cabe ao biógrafo descobrir.
Brody tem uma boa testemunha a convocar: Godard em
pessoa. Nenhum diretor oferece definições concisas melhores: "Nós esbarramos no mundo do cinema como homens
das cavernas na Versalhes de
Luís 15", ele disse sobre os diretores da nouvelle vague.
Cinema aceitável
Godard era grande nos anos
60 porque seus filmes representavam um clamor controlado. Gritavam, zumbiam, pensavam em voz alta. Não admitiam
zonas de exclusão no cinema:
era aceitável que personagens
falassem, discursassem e recitassem literatura e que o diretor ocupasse a tela com citações ou legendas de "agitprop".
Uma "trama" era considerada desimportante: apenas o argumento que o criador usava
para vender o filme aos financistas e, em seguida, ignorava
ao filmar.
Acima de tudo, nessa nova
forma de pichação virtual, as
cores e os conceitos se sobrepunham, de modo que comédia,
música, suspense, política e
realismo (o que quer que isso
fosse) disputavam espaço ferrenhamente.
Era bom demais para durar, e
não durou. Qualquer artista excitável como Godard arrisca
deixar-se excitar pelas coisas
erradas e, na febre dos anos 60,
tropeçou no maoísmo e perdeu
o sentido e a sensibilidade.
A essa altura, o livro de Brody
se torna difícil de ler. Ele nos dá
más notícias -sobre o fato de
Godard ter se tornado inatingível- ao longo de 40 anos e 300
páginas.
A amena demência de
"Week-End à Francesa", o último dos grandes filmes de Godard, despencou nas décadas
de samizdat, que Godard dedicou a fazer filmes para ele mesmo e sua turma -e que o diabo
leve o restante do potencial público de cinema.
Já o Godard dos primeiros
anos, em contraste, era o rosto
aceitável do modernismo cinematográfico. Brody o compara
a Picasso. Por que não?
Como o pintor, ele surpreendeu uma geração com seus pictogramas neoprimitivos -que,
no caso dele, corriam a 24 quadros por segundo. O modernismo era uma arte de fragmentos,
carregada de mensagens, mas
ainda assim elementar, eclética, conduzida pelo pensamento
e pela inovação apaixonada.
Volta ao entusiasmo
Quem quer que pense que o
jovem Godard, com sua chuva
de citações e referências ao longo dos filmes, não passava de
um exibicionista intelectual
deve se lembrar que ele era
amigo de Gide e Sartre, como
Brody aponta; que ele lia vorazmente; e que era capaz de defender de maneira brilhante
uma posição intelectual.
Brody captura o entusiasmo
do jovem Godard. O cinema dele era tão vivo que atraía até
mesmo críticos tendentes ao
populismo -como Pauline
Kael, do "New York Times"- e
hoje influencia cineastas tão
distintos quanto Jim Jarmusch
e Quentin Tarantino.
O auge da carreira de Godard
sobreviveu como herança cinematográfica até mesmo às mais
estridentes questões -no reexame promovido por Brody-
no que diz respeito às crenças e
simpatias políticas do cineasta.
Ele era ou é anti-semita? Era
ou é um ideólogo de extrema
esquerda?
Também há histórias de horror sobre seu comportamento
pessoal. Ele abandonou amantes, abandonou cônjuges e se
voltou contra antigos amigos.
Seu ataque a um deles provocou uma famosa carta de 20 páginas na qual a vítima, François
Truffaut, criticou de maneira
feroz a perfídia e as oscilações
políticas de Godard.
Nos anos 60, tudo isso era
perdoado por amor aos filmes.
Mas, de lá para cá, passamos
quatro décadas simplesmente
tentando esquecer.
Em festivais, cada novo filme
seu é recebido com uma questão ou prece silenciosa: "Será
que é este?". Godard conseguirá recuar no tempo? Ou voltar a
transformá-lo? Será que voltará a fazer com que nossos corações batam enquanto nossas
mentes fervilham? Ou o enfant
terrible enfim, e irrecuperavelmente, como pode acontecer a
qualquer artista, se transformou em um ex-gênio ranzinza,
turrão, obscurantista e desafiadoramente intratável?
NIGEL ANDREWS é crítico de cinema do "Financial Times", onde saiu a íntegra deste texto.
Tradução de Paulo Migliacci .
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