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Claro-escurosda história
Guinada ideológica do nicaragüense Daniel Ortega, que passou de guerrilheiro a presidente conservador, revela as idas e vindas da América Latina
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
A marcha dos acontecimentos históricos
assemelha-se a um
projetor de luz que
muda de foco com
maior ou menor rapidez, lançando ora luzes, ora sombras.
Assim, no tempo da Guerra
Fria, a América Central esteve
em evidência, pela presença de
Cuba, pelas lutas de guerrilha,
pela escancarada intervenção
norte-americana em países como a Guatemala, El Salvador e
a Nicarágua.
Com a queda do Muro de
Berlim [em 1989], a redução da
importância de Cuba, a paz mal
ou bem lograda, a região entrou
na sombra. Nem por isso é o caso de esquecê-la, como o exemplo da Nicarágua demonstra.
Em primeiro lugar, a Nicarágua -país de cerca de 5,8 milhões de habitantes- conta
com um herói mítico, Augusto
César Sandino, "o general de
homens livres", que combateu
os invasores americanos, entre
1927 e 1933, até ser morto numa armadilha, preparada pela
Guarda Nacional.
Sandino deu nome, muitos
anos depois, à Frente Sandinista de Libertação Nacional
(FSLN), a guerrilha que derrubou a ditadura de Anastasio Somoza, em 1979.
Na Junta de Reconstrução
Nacional, que dirigiu o país logo em seguida, a FSLN foi a força dominante, e nela se destacou a figura de Daniel Ortega.
Tanto a junta quanto o governo
de Ortega, eleito com um programa revolucionário de reforma agrária, nas eleições de
1984, foram um dos alvos preferenciais dos órgãos de segurança dos EUA, durante a presidência de Ronald Reagan.
O oficial da Marinha Oliver
North foi responsabilizado por
um escandaloso esquema (Irã-Contras), montado com o objetivo de burlar a proibição de
venda de armas ao Irã e destinar o produto ao financiamento dos "contras" -a guerrilha
anti-sandinista que tentou derrubar Ortega, numa luta que
causou em torno de 30 mil
mortes.
Derrotado em duas eleições
subseqüentes, Ortega voltou ao
poder em 2006, pela maioria
simples de cerca de 38% dos
votos. Em sua posse, estiveram
os presidentes Hugo Chávez
(Venezuela) e Evo Morales
(Bolívia), e o primeiro lhe deu
as bênçãos, por estar à frente
de um país que, ao lado de outros, inclusive o Brasil, iria realizar uma revolução socialista
pacífica na América Latina.
Na verdade, se muita coisa e
muita gente mudou na América Latina, nas últimas décadas,
talvez ninguém tenha mudado
mais do que Daniel Ortega.
Católico conservador
Em primeiro lugar, ele chegou ao poder graças ao apoio de
uma facção da direita, liderada
pelo ex-presidente Arnoldo
Alemán, com a qual hoje governa. No plano do comportamento social, tornou-se um fervoroso conservador católico, sustentando a legislação vigente
que proíbe estritamente o
aborto.
Para enfrentar os problemas
sociais da Nicarágua, em que
80% da população subsiste com
US$ 2 ao dia, Ortega lançou um
programa semelhante ao Fome
Zero, aparentemente com poucos resultados.
Seu modelo, porém, não é
Lula, e sim Chávez, tanto por
razões materiais quanto ideológicas. Materialmente, a Venezuela responde por todo o
fornecimento de petróleo à Nicarágua, a preços subsidiados.
Ideologicamente, o presidente nicaragüense se afina
com o discurso chavista, com
seus ataques à oligarquia e aos
EUA, país que chegou a definir
como "a maior e mais impressionante ditadura que a história já conheceu".
Mas, à semelhança de Chávez, as ações de Ortega são mais
conciliatórias do que sua retórica, como mostra, por exemplo, um acordo firmado com o
FMI, nos mesmos moldes dos
presidentes anteriores.
No âmbito da administração,
o governo Ortega é, na verdade,
o governo dos ortegas, a exemplo do casal Kirchner, na Argentina. Rosario Murillo, mulher do presidente, é a segunda
pessoa mais poderosa da Nicarágua, ocupando um cargo
equivalente à chefia da Casa Civil e vários outros, além de falar, por vezes, em nome do presidente.
Para que não se tenha uma
visão inteiramente negativa da
Nicarágua, lembremos que a
violência nas ruas -excluída,
portanto, a violência doméstica- tem um dos índices mais
baixos da América Central,
aproximando-se dos da Costa
Rica -o eldorado da região.
Ruptura
Em síntese, Ortega está muito longe dos tempos lendários
do sandinismo ou de encarnar a
figura de um líder social-democrata. Nomes respeitáveis da
esquerda latino-americana, como o escritor Sergio Ramírez
ou o teólogo da libertação e
poeta Ernesto Cardenal romperam com ele há muito tempo.
Como se explicaria então sua
volta ao poder?
De um lado, pela aliança à direita, que lhe deu um lustre de
confiabilidade entre parte das
elites; de outro, por contar com
o voto da maioria dos pobres e
miseráveis do país, para quem,
se as coisas vão mal, a culpa não
é de Ortega.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras).
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