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O submundo da cana
Estado que detém 60% da produção nacional de cana-de-açúcar, São Paulo não divide a riqueza derivada do boom de etanol com seus 135 mil cortadores, que vivem muitas vezes em situações precárias
MÁRIO MAGALHÃES
JOEL SILVA
ENVIADOS ESPECIAIS AO INTERIOR DE SP
P
ontualmente às 4h42, a canavieira Ilma Francisca de Souza parte para o
trabalho com sua marmita fornida de
arroz coberto por uma lingüiça cortadinha. Em outro bairro de Serrana,
ainda antes de o sol nascer, Rosimira Lopes sai
para o canavial levando arroz com um só acompanhamento: feijão.
Durante o dia, elas vão dar conta da comida,
que já terá esfriado. A despeito do notável progresso que ergue usinas de etanol com tecnologia assombrosa, o Brasil segue sem servir refeições quentes aos lavradores da cana-de-açúcar.
A bóia continua fria.
Durante dois meses, a Folha investigou as
condições de vida e trabalho dos cortadores de
cana no Estado que detém 60% da produção do
país que é o principal produtor do planeta.
Gente como Ilma e Rosimira.
Em uma das etapas de apuração da reportagem, por 15 dias percorreram-se 3.810 quilômetros de carro, o equivalente a nove trajetos São
Paulo-Rio de Janeiro. Um mapa [veja na pág. 6]
mostra onde ficam as cidades visitadas.
Pela primeira vez em cinco séculos, desde que
as mudas pioneiras foram trazidas pelos portugueses, em 2008 ao menos metade da cana de
São Paulo não será colhida por mãos, mas por
máquinas. É o que anunciam os usineiros.
Como na virada do século 16 para o 17, quando
o país era o líder do fabrico de açúcar, a cana oferece imensas oportunidades ao Brasil, em torno
do álcool combustível do qual ela é matéria-prima. O etanol pode se transformar em commodity, com cotação no mercado internacional. As
usinas geram energia elétrica.
A riqueza do setor sucroalcooleiro, que movimentará neste ano R$ 40 bilhões, não atingiu os
lavradores. Em 1985, um cortador em São Paulo
ganhava em média R$ 32,70 por dia (valor atualizado). Em 2007, recebeu R$ 28,90. A remuneração caiu, mas as exigências no trabalho aumentaram. Em 1985, o trabalhador cortava 5 toneladas diárias de cana. Na safra atual, 9,3.
Em 19 cidades do interior -na capital foi ouvido um representante dos empresários- , os repórteres procuraram entender por que, entre
nove culturas agrícolas, a da cana reúne os trabalhadores mais jovens.
Exige alto esforço físico uma atividade em que
é preciso dar 3.792 golpes com o facão e fazer
3.994 flexões de coluna para colher 11,5 toneladas no dia. Nos últimos anos, mortes de canavieiros foram associadas ao excesso de trabalho.
Conta-se a seguir o caso de um bóia-fria que
morreu semanas após colher 16,5 toneladas. Não
há paralelo em qualquer região com tamanho
rendimento.
Na estrada, flagraram-se ônibus deteriorados,
ausência de equipamentos de segurança no campo, moradias sem higiene e pagamento de salário inferior ao mínimo.
Conheceram-se comunidades de canavieiros
que dependem do Bolsa Família, migrantes que
tentam a sorte e lavradores que querem se livrar
do crack e de outras drogas.
Descobriram-se documentos que comprovam
a existência de fraudes no peso da cana, lesando
os lavradores.
Escravidão
No auge e na decadência do ciclo da cana-de-açúcar, os escravos cuidaram da lavoura e puseram os engenhos para funcionar. A arrancada do
etanol brasileiro foi dada por lavradores na
maioria negros.
Assim como os escravos sumiram de certa historiografia, os cortadores são uma espécie invisível nas publicações do setor. Exibem-se usinas
high-tech, mas oculta-se a mão-de-obra da roça.
Impressiona na viagem ao mundo e ao submundo da cana a semelhança de símbolos da lavoura atual com a era pré-Abolição. O fiscal das
usinas é chamado de feitor.
Acumulam-se denúncias de trabalho escravo.
É um erro supor que as acusações de degradação
passem longe do Estado mais rico do país e se limitem ao "Brasil profundo". Uma delas é narrada adiante. Em São Paulo, localiza-se Ribeirão
Preto, centro canavieiro tratado como a nossa
"Califórnia".
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem minimizado os relatos sobre trabalho penoso nos
canaviais. No ano passado, ele disse que os usineiros "estão virando heróis nacionais e mundiais porque todo mundo está de olho no álcool".
O medo de retaliações é grande entre os canavieiros. Nenhum nome foi mudado nos textos,
mas algumas pessoas, a pedido, são identificadas
apenas pelo prenome ou nem isso. As entrevistas
foram gravadas com consentimento.
São muitos esses anti-heróis: segundo os usineiros, há 335 mil cortadores de cana no Brasil,
incluindo os 135 mil de São Paulo. No Estado,
prevê-se a extinção do corte manual para 2015,
junto com as queimadas que facilitam a colheita.
Ilma e Rosimira compõem uma espécie em extinção. Por meio milênio, os cortadores, escravos
ou assalariados, viveram tempos difíceis. Nos
próximos anos, não será diferente: com baixa
qualificação, eles terão de procurar outros meios
de sobrevivência.
Não há sindicato que não constate queda nas
contratações.
O canavial não está tão longe quanto parece: ao
encher o tanque com 49 litros de álcool, consome-se uma tonelada de cana; quando se adoça
com açúcar o café da manhã, milhares de brasileiros já estão na lavoura de facão na mão.
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