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A morte cansada
Com produção em alta e salários em queda, excesso de trabalho ronda canaviais
Joel Silva/Folha Imagem
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Cortador de cana trabalha em canavial em Charqueada |
DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP
S
e dinheiro chama dinheiro, como dizem,
então pobreza chama
pobreza -e tragédia
agoura tragédia. Procurada em Guariba para conversar sobre o marido, morto
após passar mal no canavial em
2005, Maildes de Araújo se põe
a falar do morto de duas semanas antes: o cunhado, também
cortador de cana.
José Pindobeira Santos tinha
65 anos. Colheu cana até o ano
retrasado. "Ele reclamava da
barriga, de cólicas", diz a filha
Ivanir, faxineira. Voltava da lavoura com dor na virilha. Nunca se tratou ou foi tratado.
Pindobeira morreu de obstrução intestinal e broncoaspiração. Não se sabe até que ponto a lida na roça baqueou sua
saúde. Nos anos 1960 já cortava
cana nos arredores de Guariba.
Seu concunhado Antonio Ribeiro Lopes, o marido da baiana Maildes, veio ao mundo em
julho de 1950, três dias antes
do fracasso supremo do futebol
pátrio, a final da Copa. Migrou
de Berilo (MG), município da
paupérrima região do Vale do
Jequitinhonha.
Em acidentes registrados -a
subnotificação é considerável-, o facão rasgou-lhe perna
e joelho. Dores no ombro direito o afastaram da roça. Penava
com dor de cabeça. O empenho
no trabalho desencadeava cãibras na barriga, nas pernas e
nos braços. Sofria da doença de
Chagas, mas não o licenciaram.
Era funcionário da usina
Moreno. Sucumbiu no campo e
o levaram para o hospital. Causa da morte: "cardiopatia chagásica descompensada".
Lopes integra a relação de
duas dezenas de canavieiros
mortos no interior paulista de
2004 a 2007, o caçula com 20
anos. A lista foi elaborada pela
Pastoral do Migrante -há mais
mortes, não contabilizadas.
Dela não constam acidentes
de trabalho -em 2005, de cada
mil trabalhadores no cultivo da
cana, 48 sofreram acidente
ocupacional, registraram as
pesquisadoras da USP Márcia
Azanha Ferraz Dias de Moraes
e Andrea R. Ferro.
Naquele ano, segundo o Ministério do Trabalho, morreram de acidentes 84 pessoas no
setor sucroalcooleiro, incluindo lavoura e indústria (3,1%
das mortes por acidentes de
trabalho no Brasil). O Ministério Público do Trabalho investiga a razão dos óbitos e sua associação com o caráter exaustivo do corte manual.
Relatório de 2006 da Secretaria de Inspeção do Ministério
do Trabalho enumera dezenas
de irregularidades em empresas nas quais trabalhavam os
lavradores que morreram.
Uma é o não-cumprimento
do descanso de uma hora para
o almoço. Os cortadores comem em dez, 20 minutos, para
logo empunhar de novo o facão. Eles ganham por produção. Nenhum laudo atesta que
a atividade foi decisiva para os
óbitos. Seria difícil: dos oito esquadrinhados pelo ministério,
só em dois houve necropsia.
O texto da Secretaria de Inspeção afirma: "As causas de
mal súbito, parada cardiorrespiratória e AVC [acidente vascular cerebral], descritas nas
certidões de óbito, não são elementos de convicção que justifiquem a morte natural, como
alegam as empresas".
Há indícios sobre por que
morrem os canavieiros.
Em 1985, os cortadores do
Estado produziam em média 5
toneladas diárias de cana. Em
2008, são 9,3 toneladas, 86% a
mais. Há 23 anos, um lavrador
recebia R$ 6,55 por tonelada e
R$ 32,70 por jornada. Em
2007, 1.000 kg valeram R$
3,29. A remuneração por dia,
R$ 28,90 (menos 12%).
A produtividade disparou e o
salário caiu. Com a mecanização acelerada do corte e a expansão do desemprego, ficam
os mais eficientes. O homem
compete com a colheitadeira.
Os números de 1985 e 2007
são do Instituto de Economia
Agrícola. Atualizados para
reais de agosto de 2007, encontram-se em artigo dos pesquisadores Rodolfo Hoffmann
(Unicamp) e Fabíola C.R. de
Oliveira (USP).
"Penoso" e "desumano"
José Mário Gomes morreu
em 2005 aos 44 anos. Era empregado da usina Santa Helena,
do grupo Cosan, líder da produção de cana no planeta. "O óbito
ocorreu nos períodos de maior
produtividade, com picos alternados", informa o Ministério
do Trabalho.
Valdecy de Lima trabalhava
na usina Moreno, como Antonio Ribeiro Lopes. Em 7 de julho de 2005, desabou na roça.
Morreu aos 38 anos, de acidente vascular cerebral. Em 17 de
junho, decepara 16,5 toneladas.
A Moreno alega que as mortes de Antonio e Valdecy "não
ocorreram em decorrência do
esforço do trabalho". A Cosan
diz que as causas do óbito de
José Mário "ainda estão sendo
investigadas pelos órgãos competentes. A empresa prestou
todos os atendimentos necessários e colocou seu departamento de serviço social à disposição da família do colaborador.
A Cosan cumpre rigorosamente a legislação trabalhista".
O Ministério Público do Trabalho relaciona as mortes à rotina "penosa" e "desumana" e
prepara ação contra o pagamento por produção, quando o
grosso da remuneração depende do desempenho. É preciso
acumular em oito meses, a duração da safra, o suficiente para
12 -a maioria é dispensada na
entressafra.
Usineiros e segmento expressivo dos trabalhadores desejam manter o sistema.
O afinco para cortar mais e
mais provoca situações como
uma acontecida em 2007. Sob o
sol, em dia de temperatura máxima de 37ºC à sombra, nove
trabalhadores foram hospitalizados após se sentirem mal em
uma fazenda de Ibirarema.
Reclamavam de cãibras e vomitavam. Algumas usinas fornecem no campo bebidas reidratantes para a mão-de-obra
suportar o desgaste.
Em áreas de corte manual, os
canaviais costumam ser queimados antes da colheita. O fogo
queima a palha da cana, e restam apenas as varas, o que facilita o trabalho. Quando o facão
golpeia as varas com fuligem, o
pó se espalha, entra pelo nariz e
gruda na pele. A plantação recebe agrotóxicos. O lavrador
não costuma receber máscara.
Em tese de doutorado na
Unesp, a bióloga Rosa Bosso
constatou que o nível de HPAs,
substâncias cancerígenas, expelidos na urina de quatro dezenas de trabalhadores era nove vezes maior na safra do que
na entressafra.
Em temporada sem colheita,
Antonio Lopes sobreviveu como carregador de sacas de açúcar. Maildes o conheceu na lavoura da cana, onde o namoro
engatou. Ainda hoje a viúva se
orgulha: "Ele não era de enjeitar serviço".
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