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Front sem censura
"Um Escritor na Guerra" destaca o papel dos soviéticos nos combates
contra os nazistas
OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
H
á farta informação
no Brasil sobre o
papel dos americanos e dos ingleses
na Segunda Guerra
Mundial. Os ataques aéreos a
Londres, o bombardeio de
Pearl Harbor, o desembarque
na Normandia no Dia D, a libertação de Paris, tudo isso está profusamente documentado, romanceado e filmado.
O papel dos soviéticos, no
entanto, não tem recebido o
mesmo tratamento. A disputa
ideológica entre EUA e União
Soviética explica o descaso, estando o Brasil na esfera de influência americana.
Mas, do ponto de vista histórico, a discrepância não se justifica: o Exército Vermelho, ao
vencer os nazistas na batalha
de Stalingrado, foi decisivo para o resultado da guerra.
A menor atenção ao front
oriental está sendo parcialmente compensada com a publicação de "Um Escritor na
Guerra - Vasily Grossman com
o Exército Vermelho, 1941-1945" (ed. Objetiva, trad. Bruno Casotti, 495 págs., R$
56,90), editado pelo historiador inglês Antony Beevor e Luba Vinogradova, sua assistente.
Desconhecido no Brasil,
Grossman (1905-64) é considerado um dos grandes escritores
russos do século 20.
Seu romance "Vida e Destino", baseado nos fatos relatados em "Um Escritor na Guerra", foi elogiadíssimo pelo exigente crítico George Steiner e
pelo escritor inglês Martin
Amis, que o considera o Tolstói
da era soviética.
O livro agora traduzido é
uma reunião de anotações pessoais, cartas e artigos, material
produzido nos mais de mil dias
em que Grossman esteve na
frente de batalha como correspondente do jornal "Estrela
Vermelha".
Os textos são encadeados pela edição, que também faz a
ponte entre os trechos, minimizando o caráter fragmentário da obra.
Tabus
O que torna o livro especialmente relevante é a perspectiva do autor. Apesar de trabalhar para um jornal oficial, apenas descreve o que testemunha, sem enaltecer os militares
soviéticos nem o próprio Stálin,
o que seria esperado de um jornalista a serviço do governo.
Abordando temas tabus, em
desacordo com a cartilha comunista, Vasily é tido como
"politicamente ingênuo" por
Beevor, para quem só um "milagre" explica que tenha escapado dos expurgos stalinistas.
Não há dúvida de que Grossman se expôs. Sobre o comportamento de soldados, escreve:
"Coisas horríveis estão acontecendo com as mulheres alemãs. Um alemão educado, cuja
mulher recebeu "novos visitantes" -soldados do Exército Vermelho-, está explicando com
gestos expressivos e palavras
russas mal pronunciadas que
ela já foi estuprada hoje por dez
homens."
Vasily também aponta o medo dos compatriotas.
Muitos atiravam nas próprias mãos para evitar a frente
de batalha; outros tentavam fugir do combate e eram abatidos
por destacamentos que formavam uma segunda linha de ataque com o objetivo de "combater a covardia".
Colaboracionismo
O autor ainda descreve como
muitos soviéticos perseguidos
pelo stalinismo chegaram a colaborar com o inimigo -outro
assunto proibido.
Claro que nada disso era publicado. Em carta à mulher, ele
lamentou: "Se você visse como
eles cortam e alteram [meu texto], e não apenas isso, como
também acrescentam frases a
meus pobres artigos, provavelmente ficaria mais perturbada
do que feliz com o fato de meus
textos verem a luz".
Algumas coisas, porém, passavam. Um artigo sobre o campo de extermínio de Treblinka
foi citado como prova no tribunal de Nuremberg.
Um dos primeiros a chegar
ao local após a derrota dos nazistas, Vasily descreveu o horror do que viu ou ouviu: fetos
queimavam sobre o ventre
aberto das mães, crianças eram
obrigadas a espalhar cinzas humanas pelas estradas.
O autor imagina que alguém
poderia perguntar sobre o porquê de escrever sobre isso. E
responde: "É dever do escritor
contar essa terrível verdade, e é
um dever civil do leitor aprender isso".
OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de "A
História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes, pela Publifolha).
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