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Um mundo desregrado
Conflito entre Rússia e Geórgia marca a ascensão de relações multipolares perigosas, em que as potências testam umas às outras
SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA
D
iz a visão pós-moderna que não existe realidade objetiva: nossa realidade
consiste em múltiplas histórias que nos contamos sobre nós mesmos.
Sendo assim, a guerra recente na Geórgia não foi altamente
pós-moderna? Temos a história de um pequeno e heróico
Estado moderno defendendo-se contra as ambições imperialistas da Rússia pós-soviética, a
história da tentativa dos EUA
de cercar a Rússia com suas bases militares, a história da luta
pelo controle dos recursos petrolíferos etc.
Mas, em lugar de nos perdermos no labirinto dessas histórias concorrentes, devemos
voltar nossa atenção a algo que
está faltando e cuja ausência
está desencadeando a explosão
de relatos políticos em curso.
Conhecer uma sociedade significa conhecer não apenas
suas regras explícitas -devemos saber também como aplicar essas regras.
Normas implícitas
Durante os caóticos anos
pós-soviéticos do governo de
Boris Ieltsin na Rússia [1991-99], o problema podia ser identificado assim: embora as regras legais fossem conhecidas,
o que se desintegrou foi a complexa rede de normas implícitas, não escritas, que sustentavam todo o edifício social.
Se, na União Soviética, você
quisesse um tratamento hospitalar melhor ou um apartamento novo, se tivesse uma
queixa contra as autoridades,
você sabia o que era preciso fazer de fato, a quem se dirigir,
quem subornar.
Após a queda do poder soviético, um dos aspectos mais
frustrantes do cotidiano das
pessoas comuns era que essas
regras não escritas acabaram ficando confusas: as pessoas não
sabiam mais o que fazer, como
reagir, como relacionar-se com
regulamentos legais explícitos,
quais desses podiam ser ignorados, em que casos o pagamento de propinas poderia
funcionar etc.
A estabilização obtida sob o
governo de Putin equivale em
sua maior parte à recém-estabelecida transparência dessas
regras não escritas: hoje, na
maioria dos casos, as pessoas já
sabem novamente como reagir
na complexa teia das interações sociais.
Ainda não alcançamos esse
estágio na política internacional. Nos anos 90, um pacto silencioso regulamentava o relacionamento entre as grandes
potências ocidentais e a Rússia:
os Estados ocidentais tratavam
a Rússia como grande potência,
sob a condição de que ela não
agisse concretamente como tal.
Mas e se a Rússia começasse
de fato a agir como grande potência? Uma situação como essa provavelmente seria catastrófica, ameaçando fazer ruir
toda a trama existente de relações. E algo dessa natureza foi o
que aconteceu agora na Geórgia: cansada de ser apenas tratada como superpotência, a
Rússia agiu como tal. Como foi
que isso aconteceu?
O chamado "século americano" já chegou ao fim e já estamos ingressando no período de
formação de múltiplos centros
de capitalismo global: os EUA, a
Europa, a China, possivelmente a América Latina.
Cada um deles representa o
capitalismo com característica
específica: os EUA, o capitalismo neoliberal; a Europa, o que
resta do Estado de Bem-Estar
Social; a China, o capitalismo
autoritário de "valores orientais"; a América Latina, o capitalismo populista.
Após o fracasso da tentativa
dos EUA de se imporem como
superpotência única, agora é
necessário definir as regras de
interação entre esses centros
locais, no caso de seus interesses conflitantes.
É por isso que nossos tempos
são mais perigosos do que podem parecer. Durante a Guerra
Fria, as regras do comportamento internacional eram claras, sendo garantidas pela destruição mutuamente assegurada das superpotências.
Hoje, as potências antigas e
novas estão testando umas às
outras, tentando impor suas
versões próprias das regras globais e testando-as por procuração, procuração esta entregue a
outros Estados menores.
Os georgianos estão pagando
o preço por realizar esses testes. Embora as justificativas
oficiais sejam de natureza altamente moral (direitos humanos, liberdade etc.), a natureza
do jogo está clara.
É o futuro da comunidade internacional que está em jogo
agora: as novas regras que vão
regulamentá-la, qual será a nova ordem mundial. E, retroativamente, podemos enxergar
claramente que a Guerra do
Iraque foi sinal de sua derrota,
de sua incapacidade de exercer
o papel de polícia do mundo.
Os EUA simplesmente acumularam casos demais de sua
"descortesia", que os desqualificaram para o papel: pressionaram outros Estados (como a
Sérvia) a entregar seus criminosos de guerra suspeitos ao
Tribunal de Haia e ao mesmo
tempo rejeitaram brutalmente
a própria idéia de que o tribunal
também tivesse jurisdição sobre cidadãos americanos etc.
Contrapartida
Para justificar sua intervenção na Geórgia, a Rússia jogou
habilmente com essas incoerências dos EUA: se os EUA puderam intervir em Kosovo e
implementar a independência
deste, apoiada pela presença de
uma grande base militar americana ali, por que a Rússia não
deveria fazer o mesmo na Ossétia do Sul, muito mais próxima
do território russo do que Kosovo é do território americano?
Se existe alguma lição a ser tirada do conflito georgiano é
que, após o fracasso dos EUA
em agir como polícia global, devemos reconhecer também o
fracasso da nova rede de superpotências em fazer o mesmo.
Não apenas elas simplesmente não têm condições de
manter sob controle países "fora da lei" menores como, cada
vez mais, provocam o comportamento agressivo destes para
que travem suas guerras para
elas, por procuração.
Assim, a tocha da manutenção da paz passa para um círculo seguinte e mais amplo: é hora
de os países menores de todo o
mundo unirem seus esforços
para controlar as grandes potências e impor limites aos jogos obscenos delas.
Um modo cortês de lidar com
a crise georgiana teria sido, por
exemplo, que Rússia e Geórgia
concordassem que a Geórgia
tem plena soberania sobre seu
território -sob a condição de
que não afirmasse esse controle plenamente sobre a Abkházia e a Ossétia do Sul.
Podemos até mesmo afirmar
que um acordo tácito desse tipo
já existia de fato e que a Rússia
interpretou a intervenção georgiana na Ossétia do Sul como
sua violação.
A questão, é claro, é se a
Geórgia agiu por conta própria
ou se... Entretanto o enigma sobre por que os georgianos decidiram afirmar plenamente sua
soberania e arriscar uma intervenção militar não vale a pena
ser investigado.
O que importa de fato é que
as conseqüências desse "excesso" nos colocaram frente a
frente com a verdade da situação. É hora de ensinar as superpotências a terem bons modos.
SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de
"Um Mapa da Ideologia" (ed. Contraponto). Ele
escreve na seção "Autores", do Mais! .
Tradução de Clara Allain .
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