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Vestígios arcaicos
Cor da pele, vocabulário e analfabetismo remetem cortadores de cana de São Paulo aos tempos do escravismo
DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP
O cenário verdejante
que pigmenta as
fotografias e colore o horizonte não
passa de ilusão -o
tom do canavial é outro. A fuligem das queimadas ensombrece as varas de cana-de-açúcar e
torna rubro-negra a terra roxa
em que outrora se fincavam cafezais. Fragmentos da palha incinerada se amalgamam com o
suor dos rostos e desenham
máscaras escuras. A cor predominante dos canavieiros, de
banho tomado, não muda.
São negros -a soma de "pretos" e "pardos"- 63,7% dos
trabalhadores no cultivo da cana no país. A proporção supera
os 43,4% de negros na PEA
(população economicamente
ativa) e os 55% na PEA rural.
A característica se repete em
São Paulo, onde a presença negra na labuta da cana beira os
49%, o equivalente a 76% mais
que na PEA geral do Estado e
54% mais que na sua fração do
campo -conforme o Censo de
2000, em dados colecionados
pelo economista Marcelo Paixão (UFRJ).
Os números frios ganham vida nas plantações. De perto, o
canavial é mesmo negro.
Como eram os escravos que
no Brasil moviam as moendas
de cana, como documentou
aquarela de Jean-Baptiste Debret em 1822. Ou, em gravura
de William Clark de meses depois, os cativos que decepavam
com facão a cana em Antígua.
Traços raciais e instrumentos de ofício se mantêm, mas o
anacronismo vai além da semelhança de personagens dos retratos atuais com os das pinceladas do século retrasado.
É como se estatuto e cultura
escravistas teimassem em permanecer, assim como um pé de
cana se agarra ao solo e por vezes rende dez safras.
"Já conversei com o meu feitor", diz um canavieiro, sobre a
autorização para que ele fosse
fotografado para a reportagem
(pedido negado). "O meu feitor
é bom comigo", concede outro.
Inexiste conteúdo pejorativo, na boca dos cortadores, ao
pronunciar a palavra. No
Houaiss, uma acepção de feitor: "Diacronismo: antigo. Diz-se de encarregado dos trabalhadores escravos".
É arcaico -ou velhaco-, porém os chefes de turma assim
são chamados na roça. Imprimiu-se a expressão "feitor" em
ação civil pública e em decisão
judicial recentes.
Em meio ao canavial, o cortador cuida do seu "eito". "Não
paro até acabar o meu eito",
conta um. O dicionário define
eito como "plantação em que
os escravos trabalhavam".
Analfabetismo
Assim como na escravidão
africanos e descendentes cantavam, a cantoria hoje desafia o
silêncio nas fazendas. Não são
tristes os canaviais.
Em Serra Azul, um peão embala os golpes de podão com refrão da dupla sertaneja Gino e
Geno: "Não é bebendo que você
vai esquecer de mim; não é fugindo que o nosso amor vai chegar ao fim".
Cortadores de cana apegam-se ao copo, reconhecem muitos
deles. A convivência longe da
roça confirma.
A caninha não era tabu pré-Abolição. Na década de 1820,
Carlos Augusto Taunay recomendava aos senhores, no
"Manual do Agricultor Brasileiro", distribuir cachaça aos
escravos após o jantar (reedição da Companhia das Letras,
2001, organização do historiador da USP Rafael de Bivar
Marquese).
Naquele tempo, confinava-se
a escravaria no analfabetismo.
Na Revolta dos Malês, levante
negro na Bahia de 1835, os líderes se distinguiram pelo domínio, raro, da leitura e da escrita.
Colhe-se o semeado. Com
base em estatísticas de 2006, os
pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R.
de Oliveira (USP) constataram
que a escolaridade média dos
trabalhadores da cana é de 3,7
anos. Na classificação de educadores, isso os reduz à condição de analfabetos funcionais.
No país, a média de estudo é
de 6,9 anos. Na indústria do álcool, de 8,6.
Acumulam-se contratos em
que a impressão digital do funcionário substitui a assinatura.
"Não vou mentir, nunca fui à
escola", conforma-se uma lavradora. Ela não pode ler os relatórios do Ministério do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho que descrevem cortadores de cana
"resgatados" e "libertados".
Em maio, a Justiça Federal
do Maranhão condenou um fazendeiro por reduzir seres humanos a condição análoga à de
escravo. Ele foi acusado de torturar um funcionário com ferro
de marcar gado.
Também por trabalho escravo, em 2005 a Justiça Federal
de Piracicaba sentenciou à prisão um aliciador de paraibanos
para o corte da cana em Nova
Odessa (SP).
Cabem recursos.
Escravidão
Como interpretou Gilberto
Freyre em "Casa Grande &
Senzala", a cana "trouxe em
conseqüência uma sociedade e
um gênero de vida de tendências mais ou menos aristocráticas e escravocratas".
No canavial, o "mais ou menos" deu lugar ao paroxismo.
No livro clássico de 1933, o
sociólogo pernambucano anotou que, nos idos de 1850,
anúncios apregoavam preferência por negros com todos os
dentes da frente. Nas plantações contemporâneas, multiplicam-se banguelas.
No finzinho do século 17, o jesuíta Jorge Benci pregava que
os escravos não dessem duro
aos domingos, como cita Bivar
Marquese no livro "Feitores do
Corpo, Missionários da Mente"
(Companhia das Letras, 2004).
Hoje o Ministério Público do
Trabalho combate o regime de
cinco dias por um, adotado em
muitos canaviais, no qual poucas folgas caem nos domingos e
feriados.
A escala impede os oriundos
de Minas Gerais e do Nordeste
de celebrar datas que lhe são
caras em virtude da religião.
No passado, batia o aperto,
corria-se ao matinho. Segue assim: muitas empresas não instalam banheiros móveis obrigatórios ou, por inibição, os lavradores os evitam.
Se antes os filhos da casa
grande se iniciavam nos dengos
da cama com as moradoras
mais formosas da senzala, agora se protocolam denúncias de
assédio sexual de feitores contra as cortadoras.
Nas famílias canavieiras, mulheres vivem de outra profissão
herdeira do Brasil colonial: são
empregadas domésticas. Nessa
atividade, elas têm mais tempo
pela frente.
A socióloga Maria Aparecida
Moraes Silva (Unesp) estima
que a vida útil dos cortadores
seja de 15 a 20 anos. É menos
que a dos escravos nas décadas
derradeiras do cativeiro no
país. É como se os lavradores
"estivessem em uma galé", escreveram os professores Francisco Alves (UFSCar) e Marcelo
Paixão.
Em 13 de maio de 1888, a
princesa imperial firmou a lei
nº 3.353, com dois artigos: "É
declarada extinta desde a data
desta lei a escravidão no Brasil.
Revogam-se as disposições em
contrário".
No interior paulista, evoca-se
a história. Em Dois Córregos,
um migrante pernambucano
sobrevive em uma espécie de
cortiço na rua 13 de Maio. Em
Guariba, uma habitação degradada de cortadores maranhenses fica na avenida Princesa
Isabel.
Em Piracicaba, uma blitz oficial parte de outra rua 13 de
Maio. Vai para a roça, onde aves
de rapina perseguem os roedores que as queimadas expulsaram das tocas.
Sem dar pelota ao duelo entre ratos e urubus, homens e
mulheres cortam cana.
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