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A escritora inglesa A.S. Byatt e a psicanalista brasileira Ignês
Sodré confundem ficção e realidade em "Imaginando Personagens"
A boa e velha vida alheia
Tornou-se uma proibição intransponível tratar de personagens
de um romance como se fossem pessoas reais
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Imaginando Personagens
350 págs., R$ 35,00
de A.S. Byatt e Ignês Sodré. Civilização Brasileira
(r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/ xx/
21/ 2585-2000).
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
A coleção "Oficina Interior", da
editora Civilização Brasileira,
vem trazendo ao público brasileiro diversos livros interessantes e, digamos, bem pouco "populares":
as crônicas musicais do escritor cubano
Alejo Carpentier ("O Músico em Mim"),
as impressões do marchand Ambroise
Vollard sobre alguns de seus contemporâneos ("Ouvindo Cézanne, Degas, Renoir") e o corrosivo estudo sobre "O Mito do Maestro", de Norman Lebrechet.
Este "Imaginando Personagens" não foge ao espírito da coleção. Ignês Sodré é
uma psicanalista brasileira radicada em
Londres há mais de 20 anos. A escritora
A.S. Byatt é autora, entre outros, de "Possessão", premiado exemplo dos chamados "romances de campus" -com intrigas envolvendo eruditos e humanistas
entre os muros de uma universidade. Esse romance, publicado no Brasil pela
Companhia das Letras, foi recentemente
adaptado para o cinema, com direção de
Neil LaBute.
"Imaginando Pesonagens" é composto
das longas conversas entre Byatt e Sodré
a respeito de seis romances: "Mansfield
Park", de Jane Austen, "Villette", de
Charlotte Brontë, "Daniel Deronda", de
George Eliot, "A Casa do Professor", de
Willa Cather, "Uma Rosa Informal", de
Iris Murdoch, e "Amada", de Toni Morrison. É recomendável que o leitor tenha
por perto esses seis livros, antes de mergulhar no diálogo entre as autoras. Cada
conversa é precedida de um breve resumo do romance comentado, mas a iniciativa é de pouca ajuda. Corre-se o risco
de perder rapidamente o interesse por sinopses como a que segue.
"Mansfield Park, cenário do terceiro
romance (1814) de Jane Austen, é uma
propriedade em Northamptonshire pertencente a sir Thomas Bertram. Sua mulher, Lady Bertram, era, antes de se casar,
uma das três irmãs Ward. Sir Thomas
acolhe em sua família a jovem heroína
Fanny Price, um dos muitos filhos de sua
cunhada (...) Fanny é recebida friamente
pelos primos, tio e tias, em particular pela sra. Norris, a terceira irmã Ward. (...)
Apenas Edmund, o sensível filho mais
novo de sir Thomas, é generoso com ela,
e Fanny se apaixona secretamente por
ele. Edmund, no entanto, cai pelos encantos da bonita e namoradeira Mary
Crawford, irmã de um primeiro casamento da sra. Grant (...) Mary também
tem um irmão arrebatador, Henry, que
se complica ao flertar descaradamente
com as irmãs de Edmund, Julia e Maria,
particularmente Maria, que é noiva do
próspero, mas afetado, sr. Rushworth."
Ufa! Imagino que psicanalistas tenham
muito treino em esquematizar mentalmente tais labirintos de afeto e parentesco, coisa que os romancistas, por sua vez,
gostam de construir, e dos quais os personagens só conseguem sair quando
morrem ou se casam.
Diga-se, sem purismo nem falso escândalo, que há tanto interesse pela literatura quanto pela boa e velha vida alheia
nestas conversas entre Byatt e Sodré.
Tornou-se uma proibição intransponível, do ponto de vista da crítica literária,
tratar de personagens de um romance
como se fossem pessoas reais; e uma das
restrições mais comuns ao uso da psicanálise no estudo da literatura é a de que
não se está falando de seres humanos
com inconsciente, memória, traumas de
infância e sonhos próprios, mas sim de
construções fictícias, criadas pelo escritor. A separação entre "real" e "literário"
não pode ser, porém, tão exclusiva assim. Uma autora como Jane Austen, dizem Byatt e Sodré, permite justamente
que se fale de seus personagens como se
de fato existissem: e este é um dos prazeres de ler romances, afinal.
Os comentários de Byatt e Sodré são,
ao mesmo tempo, extremamente sensíveis para a qualidade literária (o que,
num romance, não se confunde com a
qualidade estilística) do texto. Comentando as páginas iniciais de "Daniel Deronda", de George Eliot, Byatt analisa a
sequência de perguntas com que se abre
a narração, dizendo que tudo é construído para que sintamos algo de maldoso
com relação à protagonista; nota que as
descrições do ambiente -uma casa de
jogo no continente europeu- se cercam
de "precisão total e de mistério total";
que começamos a conhecer a protagonista por meio dos efeitos que exerce sobre um outro personagem, que desconfia dela... Uma série de habilidades e de
astúcias literárias é identificada, para
concluir-se que, "ao longo do romance,
ninguém gosta de Gwendolen; em qualquer romance convencional, uma pessoa
apresentada desta maneira seria a vilã...
mas estamos conhecendo a vítima". Comentário de Ignês Sodré: "Ela sofre de
falta de perspicácia, e isto é basicamente,
segundo George Eliot, a sua falha; ela é
danosa porque é incapaz de enxergar...".
Desse modo, avalia-se tanto a personagem quanto o livro, tanto as metáforas
(literárias) quanto as imagens (psicológicas), tanto as astúcias e invenções do
narrador quanto as lições morais que reservam os acontecimentos de cada romance.
Também em outro aspecto, "Imaginando Personagens" parece dissolver a
separação entre os livros e o mundo real.
É que, em vez de apresentar-se como um
livro de crítica, que poderíamos ler devagar, parece levar-nos de chofre à sala de
estar onde conversam as duas autoras e
amigas, tomando chá tranquilamente.
Podemos admirar a inteligência de ambas, mas nos sentimos pouco à vontade
no meio da conversa.
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