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EXCLUSIVO E FICTÍCIO
A desconstrução da paranóia
AUTOR DE "V." E "O ARCO-ÍRIS DA GRAVIDADE", O AMERICANO THOMAS PYNCHON
DEFENDE QUE A FICÇÃO É HOJE CADA VEZ MAIS A PRÓPRIA INFORMAÇÃO
Bernardo Carvalho
Colunista da Folha
É bem mais fácil entrevistar Thomas Pynchon, 67,
do que se imagina. Ainda mais depois de ele ter
dublado a si mesmo em "Os Simpsons", rompendo 40 anos de silêncio (no episódio do desenho animado que foi ao ar em 25 de janeiro, nos Estados Unidos, seu personagem aparece com um saco de
papel enfiado na cabeça). O mais secreto dos escritores
americanos, o mais recluso (ao lado de Salinger), autor
do monumental "O Arco-Íris da Gravidade" (1973), um
dos romances mais importantes do século 20, além do
genial "V." (1963), marco da chamada literatura pós-modernista, e dos mais recentes "Vineland" e "Mason
& Dixon", concordou em conceder uma entrevista
contanto que ela fosse publicada como fictícia e que eu
não revelasse como a tinha conseguido.
Responderia a todas as perguntas sem o menor problema -o problema dele, como eu acabaria descobrindo, é a burrice dos entrevistadores. No fundo, não se
importa em dar entrevistas contanto que o leitor chegue
ao final acreditando que ele (Pynchon) nunca tenha dito nada daquilo, que tudo foi inventado pelo presumido
entrevistador. E eu me comprometi a cumprir a exigência. Não vejo graça nas entrevistas fictícias de escritores
famosos e reclusos, mas, se era essa a condição para ganhar as suas respostas, podia muito bem mudar de opinião. Garanti que o texto sairia numa edição do Mais!,
ao lado de outras entrevistas inventadas. Ninguém iria
desconfiar de que, de todas, aquela pudesse ser a única
verdadeira.
Marcamos o encontro num café lúgubre da rua 21, no
East Side, em Nova York, onde Pynchon nunca tinha
pisado nem pretendia voltar a pisar. O escritor é conhecido por um único retrato de ginásio, de 1953, em que
aparece dentuço e com topete, com cara de bobo alegre.
É óbvio que não o reconheci quando entrou -e em alguns momentos ao longo da entrevista cheguei a duvidar de que fosse ele.
Por exemplo: quando perguntei, sem maiores expectativas, se conhecia algum escritor brasileiro, ele já tinha
o nome de Rubem Fonseca na ponta da língua. Disse
que o admirava e o conhecia pessoalmente.
Eles tinham se encontrado em Nova York. Estava falando sério. Achei que a revelação só daria ainda mais
verossimilhança à inverossimilhança da minha entrevista, contribuindo para o efeito de ficção que ele queria
causar no leitor. Ninguém (sobretudo nenhum dos fãs
brasileiros) ia acreditar que ele conhecia Rubem Fonseca pessoalmente.
Pynchon disse ainda que acompanha com atenção a
carreira de algumas bandas de rock independentes.
Mas, para mim, o mais inacreditável continuava sendo
a história da sua participação num episódio de "Os
Simpsons".
De onde você tirou essa história?
Da internet.
Há 20 anos, quando resolvi reunir e publicar os meus
contos escritos entre 58 e 64 ("Slow Learner" saiu em
1984), escrevi, no prefácio, que tínhamos entrado
numa era em que qualquer um passava a ter acesso a
uma massa incrível de informações, com um simples toque de computador. Já não havia desculpas
para os erros mais estúpidos que fazíamos no passado. É lógico que tudo tem um preço. Na época, não
pensei nisso. Hoje, você publica o que quiser na internet e o mundo inteiro acredita.
As pessoas já acreditavam na televisão e nos jornais.
Temos ainda mais vontade de acreditar. Há uma
quantidade incrível de informações nas quais a rigor
você sabe que não pode confiar. Isso deveria gerar
mais desconfiança. Mas a tentação de acreditar nelas
é proporcional à oferta.
A voz nos Simpsons não é sua?
As pessoas perderam a capacidade de desconfiar. Vivemos num mundo de crentes.
Isso significa que já não há entre os leitores o germe da
paranóia que garantiu o sucesso de livros como "V." e "O
Arco-Íris da Gravidade" durante a Guerra Fria?
Não vejo as coisas desse jeito. É um truísmo dizer
que esses romances são paranóicos. A paranóia é o
mundo. Não existe literatura nem arte sem paranóia.
Provavelmente, não haveria nem civilização. A paranóia é a tentativa de dar sentido ao que não tem, ao
desconhecido. E não é isso o que o homem tenta fazer desde o início dos tempos?
O senhor escreveu, a propósito da ameaça atômica durante a Guerra Fria, que "todos tentamos de uma maneira ou de outra viver na lenta escalada da impotência e do
terror, seja procurando pensar em outra coisa, seja perdendo de vez a cabeça. Entre as diferentes manifestações
de impotência, uma solução se apresentava: fazer disso
ficção". Hoje, com o terrorismo, há uma nova forma de
ameaça mundial no ar. E a ficção?
A ficção é cada vez mais a própria informação. Mas,
ao contrário do que você sugeriu, e só para completar, eu diria ainda que os meus romances tentaram
desconstruir a paranóia. Isso me parece claro. A não
ser que você não perceba nenhum humor neles.
O senhor definiu a paranóia como "o reflexo de buscar
outras ordens por trás do visível"...
É só um dos aspectos, o positivo, o artístico, digamos. A busca do sentido pela desconfiança.
E o negativo?
É o inverso. A cegueira.
Como assim?
O terrorismo, por exemplo, incita a paranóia. É por
isso que, mesmo perdendo por critérios tradicionais,
mesmo sendo aniquilados, os terroristas da Al Qaeda já ganharam a guerra contra os "infiéis do Ocidente". Igualaram as sociedades ocidentais ao terror.
Foi a desculpa que faltava aos que, de dentro do
mundo ocidental, já queriam dar um fim às liberdades conquistadas pelos regimes democráticos e pela
modernidade. Submeteram a sociedade laica à lógica da religião, que está sempre à espreita, pronta para germinar.
O senhor escreveu que a guerra é apenas um disfarce, um
espetáculo que encobre e faz desviar os olhares dos reais
movimentos da guerra. Quais são hoje os reais movimentos da guerra?
As diferenças raciais ou religiosas sempre foram desculpas para as desigualdades materiais e de poder. É
o que eu penso há 40 anos. Elas apenas encobrem essas desigualdades. Eu achava que um dos efeitos
mais perniciosos dos anos 50 tinha sido convencer
os americanos de que aquilo ia durar para sempre.
Os anos 80 e os 90 talvez tenham sido ainda piores.
As pessoas acharam que iam continuar vivendo daquele jeito. Um dia acordaram para a promiscuidade
entre as grandes corporações e o poder. Os americanos só desconfiam quando perdem dinheiro, quando o visível deixa de ser aquilo em que apostaram as
suas economias. Mas não durou muito tempo.
O terrorismo, em seguida, conseguiu fazer com que
passassem a viver sob o mesmo estado de insegurança e medo a que mais de dois terços da população do
planeta já estavam acostumados havia décadas. É
um desafio brutal à razão. A paranóia é o berço de
toda religião. "Tudo está ligado." Afinal, não é esse o
bordão de ambas? Para a paranóia e para a religião,
tudo tem que fazer sentido. Só que a paranóia devia
ser, por princípio, a religião dos descrentes. E o terrorismo converte a paranóia em crença. Não é por
acaso que integrismo e terrorismo andam de mãos
dadas. São tentativas de dar um sentido ao mundo à
força. Nesse ponto, religião e informática também
devem ter algo em comum. Ambas pedem um mundo de crentes.
Na juventude, o senhor gostava dos surrealistas, porque
combinavam elementos díspares para alcançar resultados ilógicos. Justamente o contrário da religião. Há um
trabalho na atual bienal do museu Whitney cujo título é
"Pictures Showing What Happens on Each Page of Thomas Pynchon's Novel "Gravity's Rainbow'" [Quadros Mostrando O Que Acontece em Cada Página do Romance de
Thomas Pynchon "O Arco-Íris da Gravidade'"], de Zak
Smith. O que acha da arte hoje?
Não acompanho. A mim parece que a arte está em
outro lugar, que ainda não chamamos de arte. Só
não me pergunte que lugar é esse.
Até agora, falamos basicamente sobre a mentira. O senhor escreveu uma vez que a verdade surge da mistura
entre autobiografia e imaginação.
Não me lembro disso.
Lembrei dessa frase por causa das aparições esporádicas,
ainda que virtuais, que tem feito na mídia, endossando
um grupo de rock, fazendo o prefácio de uma nova edição de "1984", de George Orwell, ou dublando a si mesmo em "Os Simpsons". A reclusão combinada com essas
aparições no fundo não alimenta a imaginação, o mito e
o efeito de marketing sobre a sua pessoa ausente e os
seus livros?
Você tinha me parecido mais inteligente. O seu tempo se esgotou.
Bernardo Carvalho é autor de "Mongólia", "Nove Noites" e "As Iniciais" (Cia. das Letras), entre outros livros.
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