|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
EXCLUSIVO E FICTÍCIO
Perspectiva de fuga
O FRANCÊS JULIEN GRACQ ATACA AS "GALERIAS LAFAYETTE DA LITERATURA" E REVELA A IMPORTÂNCIA DE "OS SERTÕES" PARA
A COMPOSIÇÃO DE SUA PRINCIPAL OBRA, "O LITORAL DAS SIRTES"
Marcos Flamínio Peres
Editor-adjunto do Mais!
Julien Gracq é um escritor sabidamente recluso. Do
alto de seus 93 anos, "o último senhor das letras
francesas" faz pouco, muito pouco, da borbulhante
cena literária de seu país. Vivendo solitário em uma
casa no vilarejo de Saint-Florent-le-Vieil, recebe apenas
algumas pessoas, escolhidas a dedo -e em geral para
conversas, quase nunca para entrevistas. No longínquo
ano de 1951 Gracq já sacudira a intelligentsia ao recusar
o prestigioso Prêmio Goncourt por "O Litoral das Sirtes", romance que se tornaria central para a literatura
francesa do século 20. Quase à mesma época, desancava
o jogo de interesses de escritores, imprensa e críticos
com o virulento libelo "A Literatura no Estômago".
Há pelo menos seis meses o Mais! tentava estabelecer
contato com esse ermitão das letras, usando como argumento a publicação da tradução brasileira de "O Litoral das Sirtes", que sairá em agosto pela editora Girafa. Após algumas tentativas, mediadas pelo editor e
amigo de décadas José Corti, acertou-se que Gracq responderia a oito perguntas enviadas via fax. Duas semanas atrás, cerca de um mês e meio após o envio das
questões, as respostas chegaram à redação do Mais! remetidas pelo correio -mas postadas, curiosamente,
não em seu vilarejo nem em Paris, onde mora seu agente e editor, mas em Nantes, cidade de dimensões quase
míticas em sua obra. Aliás, é de Nantes talvez o mais
imaginativo dos narradores franceses, Julio Verne, influência declarada de Gracq.
Um detalhe chamou a atenção nas respostas: comparando-as àquelas dadas pelo escritor nas raras entrevistas que concedeu ao longo de sua vida -parte delas recolhidas em livro-, nota-se uma semelhança surpreendente, devida em parte a uma mera coincidência.
O mais provável, contudo, é que Gracq, esse surrealista
incansável e admirador de André Breton, esteja ele próprio experimentando uma nova modalidade narrativa
-pós-moderna, diriam alguns-, baseada na colagem
de citações de suas próprias declarações, como se estivesse levando ao limite a crise da representação que o
surrealista René Magritte desbravou com sua pintura
"Isto Não É um Cachimbo", de 1929.
Resta por fim a hipótese -descabida, sem dúvida,
mas que é dever registrar- de que se trata simplesmente de uma farsa ou, no mínimo, de uma brincadeira
bem pouco condizente com a dignidade de um dos
poucos literatos a ter visto sua obra reunida na prestigiosa coleção "Pléiade".
Feita a ressalva, segue a entrevista, em que Gracq comenta sua surpreendente relação com a literatura brasileira, ao afirmar que a leitura de "O Sertões" foi decisiva
para a composição de "O Litoral das Sirtes" -obra na
qual a espera angustiada pela guerra é narrada em um
registro ao mesmo tempo onírico, inspirado nos românticos alemães, e histórico. Curiosamente, Gracq parece ter compreendido a obra de Euclides como estritamente ficcional, desprovida de bases factuais. Talvez ele
esteja apenas fazendo uma ironia aos estatutos da ficção
e da história -tensão de fato latente em "O Litoral das
Sirtes". Talvez se trate de algo mais: de um sarcasmo
com o que há de imponderável e bárbaro nesse episódio
central da história do Brasil.
Para dirimir essa e outras dúvidas, o Mais! enviou a
Gracq, no mesmo número de fax, uma segunda série de
perguntas. Ele não respondeu. Por enquanto.
Um crítico o definiu como "um surrealista que escreve como um professor". Como o sr. concilia, em sua escrita, essa tendência simultânea ao arrojo e à contenção?
Talvez ele tenha dito isso porque, para mim, a vontade de escrever decorre essencialmente de uma necessidade de tornar as coisas precisas, de acertar as
contas com a expressão. Nossa cultura repousa sobre obras que se construíram preocupadas o tempo
todo com a técnica, como uma obsessão. A "escrita
automática" é um exemplo disso, embora ela nunca
tenha impedido os surrealistas de escreverem seguindo a própria inspiração. Já nos romances existencialistas ou no nouveau roman, tudo se passa como se a originalidade fosse buscada assim como o
próprio cinema tentará fazê-lo um dia: suprimindo
sucessivamente o relevo, a cor e o som, obtendo por
um breve momento a sensação do nunca visto -como um homem normal que se torna bruscamente
daltônico, hipermetrope ou cego de um olho.
O momento da partida é uma imagem recorrente em sua
obra, de que é exemplo "O Litoral das Sirtes". Por quê?
Porque ela traduz, à sua maneira, uma imagem do
desdobramento: a necessidade de ser ao mesmo
tempo ator e espectador, de se distanciar constantemente daquilo que se faz, não deixando de fazê-lo.
Pois o homem que vai partir lança um olhar novo sobre aquilo que o cerca. Ele ainda está lá e não está
mais: já envolvido em uma perspectiva de fuga, ele
usufrui ao mesmo tempo de uma percepção quase
mágica dessa estabilidade condenada.
O duro ataque ao meio literário francês, em "A Literatura
no Estômago", parece mais atual do que nunca. Como o
sr. vê a situação hoje?
Acompanho de longe, mas o suficiente para atestar
sua terrível atualidade. Na França a literatura se realiza tendo ao fundo um murmúrio contínuo e febril
de uma perpétua Bolsa de Valores. Aqui só se permite ler (mas ler verdadeiramente) um autor uma única vez: a primeira; na segunda, ele já está consagrado, embalsamado nesses manuais de literatura contemporânea que a crítica se desdobra para manter
atualizados, como as galerias Lafayette de nossa literatura. A literatura é vítima de uma formidável manobra de intimidação por parte do não-literário -e
do mais agressivo não-literário.
Michel Houellebecq é um caso paradigmático pelo
que representa de desperdício de talento. O terço inicial de seu "Plataforma" [ed. Record] traça um instigante painel da França de fins do século 20, inteiramente desnorteada. Porém mais da metade do livro
é de uma redundância notável. Tem-se a impressão
de que o editor recebeu a versão inicial do livro e lhe
sugeriu: "Acrescente mais umas 200, 300 páginas
que ele se torna um romance, e assim você poderá
concorrer com mais chance às dezenas de prêmios
literário oferecidos". E o autor o fez, e a crítica ainda
aplaudiu.
Aliás, resolvi conceder essa entrevista a um jornal
brasileiro como uma espécie de alerta, na esperança
de que em seu país essas relações não estejam ainda
tão promíscuas como o estão na França.
Assim como Baudelaire, o sr. também foi influenciado
por Edgar Allan Poe. A que o sr. atribui essa influência tão
marcante na literatura francesa?
Poe, do outro lado do oceano, soube apreender o
odor íntimo da Europa -seu aroma perturbador de
refinada podridão-, vergada sob o peso de suas recordações e de seus sonhos.
O que restou do surrealismo?
Hoje ninguém -ou quase ninguém- reconhece
mais sua filiação ao surrealismo, mas cada um o trai
em algum canto de sua obra, assim como nos EUA
um negro de ascendência branca trai sua raça por
meio de suas unhas.
Mas a literatura... essa está acabando.
E quais escritores americanos recentes o sr. aprecia?
Nenhum, embora tenha lido e gostado de "Ravelstein" [ed. Rocco], de Saul Bellow.
O que o sr. conhece da literatura brasileira?
Li apenas um livro, "Os Sertões", de Euclides [da]
Cunha, no final dos anos 1940, em uma tradução
francesa que por acaso havia caído em minhas mãos
através de Breton [1896-1966]. Confesso que a inspiração para o reino do Farguestão e, sobretudo, o clima de inefabilidadade que percorre "O Litoral das
Sirtes" deve muito a "Os Sertões" -um livro que,
para mim, é uma aplicação, avant la lettre, das potencialidades do surrealismo. É uma obra magistral,
que parte de uma frágil base histórica para descrever
uma situação, sem dúvida, inteiramente ficcional
(ainda bem, de resto).
Por toda a vida o sr. foi professor de história e geografia
em "lycées" (equivalentes, no Brasil, aos três últimos
anos do ensino fundamental). Como o sr. avalia o 11 de
Setembro e seus desdobramentos?
Essa pergunta caberia melhor a autores do naipe de
um [Jean Paul] Sartre, [Albert] Camus ou [André]
Malraux, não a mim. Meu assunto é a literatura.
Texto Anterior: + o que ler Próximo Texto: Exclusivo e fictício: Caíram as fichas Índice
|