São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004 |
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EXCLUSIVO E FICTÍCIO Caíram as fichas
LEIA A SEGUIR SEIS FICHAS ANOTADAS POR
MÁRIO DE ANDRADE, NAS QUAIS O AUTOR DE "MACUNAÍMA" ATACA A POSTURA SUBSERVIENTE DOS ACADÊMICOS PAULISTAS EM RELAÇÃO A GETÚLIO VARGAS
[As fichas -num total de 19- foram encontradas no arquivo de Murilo Miranda. A caligrafia de Mário de Andrade é
reconhecível. As anotações tinham o fim
de ajudá-lo a refletir sobre a estratégia de que se serviria para dar o recado político nas entrelinhas da conferência "O Movimento Modernista". Esta acabou sendo lida não no dia 10, mas no dia 30 de abril daquele
ano, no salão de conferências do Itamaraty (Rio de Janeiro). Em carta a Paulo Duarte, então no exílio nova-iorquino, Mário anuncia a palestra e informa: será
"pretexto pra dizer umas coisas meio brabinhas que
desejo dizer".
Além do mais, quem irá escrever os relatórios mensais para o Sphan, no Rio? Função minha, só minha, delegada pelo Capanema. Mamãe no declínio final. Não vou aceitar o convite da Casa do Estudante. Tenho milietas de razões. Respondo: Obrigado, não posso aceitar. Não, sim? Sim, não? Obrigado, aceito. [Ficha 2] Bom que a palestra não seja aqui, que seja lá. Tem de ser lá. Será entregue ao público na capital das falcatruas contra os paulistas. Na capital do Estado Novo, presidida pelo doutor Getúlio Vargas, que, em gesto magnânimo, declinou (?) há pouco o título de doutor honoris causa. O título fora concedido pelo Conselho Universitário de São Paulo, por solicitação dos presidentes dos centros acadêmicos. Irei ao Rio dar um piparote no ditador, direto num dos abanos. Só de imaginar, vocifera tamanho ódio em mim que me arrepio todo, da cabeça aos pés. Depois tomo um porre em homenagem aos 20 anos do movimento modernista. Às vésperas da viagem, dou adeus ao Franciscano e seus litros de chope e, no dia seguinte, boas-vindas à rua Santo Amaro, velha de guerra. Desço no Santos Dumont. Deixo a mala no Natal Hotel. Apanho um táxi. Passo rapidamente pelo Catete; dou dois dedos de prosa com o porteiro do edifício Minas Gerais (a ironia já está no nome!). Saudades do Rio não as tenho. Transponho a porta de entrada da masmorra no exílio, ainda que seja só para dizer que nunca mais porei os pés lá dentro. Quem estará morando no apartamento 46? A curiosidade ribomba no meu coração. Cadeiras da Taberna da Glória e turma da pesada, aguardem-me. Na manhã de 10 de abril de 1942 comemorarei o meu dia do Fico (do fico definitivamente em São Paulo, onde morrerei aos 55 anos. Idade de Cristo mais 22 = 55; noves fora, cova rasa). [Ficha 3] Pisarei de novo na pista do aeroporto. Irei passageiramente à capital federal, só pelo prazer do cara a cara paulista com os colegas mineiros e gaúchos do ministério. Ao se abrirem as portas da nova década, tomei a grande decisão. Totalmente de porre, bati com o punho cerrado na mesa de bar e disse de mim para mim: Vou-me embora pra São Paulo, morar na minha casa. Em 1924 Paulo [Prado] descobriu o ovo de Colombo da poesia pau-brasil na Place Clichy, umbigo do mundo. Há menos de ano, numa mesa de bar do Catete, rodeado de putas e gigolôs, descobri o meu ovo de Colombo, umbigo do ser. Foi o que relatei em carta ao outro Paulo [Duarte]. Transcrevo este trechinho: "E eis que, zás, num átimo e de supetão minha desgraça diminuiu de seus sete décimos, que os outros três décimos são a dor humana, universal eterna pelos outros homens, coisa sem cura nem ovo possível". De Nova York, onde se refugiou, depois de ter escapado com a mulher, Juanita, dos invasores boches de Paris, Paulo me respondeu dizendo que, com a decisão briosa, eu tinha finalmente criado juízo. (Abre-te boca e conclama Em plena Praça da Sé, O horror que o nazismo infame É.) (3) Agora, é você, Paulo, que precisa criar juízo e tomar o avião de volta. Loucura minha. Paulo não pode regressar ao Brasil. Seria preso no aeroporto ou no cais. Escrevi a ele. As notícias que recebo dos acadêmicos que me cercam não são favoráveis aos nossos velhos ideais. À custa de muito arame, a administração federal tem conseguido angariar as simpatias universitárias. Jararaca e Ratinho -a dupla caipira do Ministério da Educação- tocaram viola mineira no passado, hoje não brincam em serviço no edifício da Cinelândia. Tocam gaita. Verbas não faltam aos estudantes para excursões pelo país e ao exterior; abarrotaram os cofres dos diretórios acadêmicos; bolsas à farta para os alunos; aproveitamento dos estudantes no serviço público; regulamentação dos esportes universitários e, "last but not the least", oficialização da UNE, razão para os desentendimentos com a presidente da Casa do Estudante, Ana Amélia. Não me admira -continuei informando ao nosso amigo em Nova York- que os nossos jovens conterrâneos tenham solicitado ao Conselho Universitário que botasse o retrato do doutor Getúlio na mesma galeria de honra em que figuram Armando de Salles Oliveira, Júlio Mesquita Filho, Reinaldo Porchat... [Ficha 4] Um achincalhe o episódio do título a Getúlio votado no Conselho Universitário. De permeio, a nova geração de acadêmicos paulistas. Vergonha das vergonhas. O balanço histórico do modernismo só tem sentido se escrito aqui e lido lá. Na capital do Estado Novo. Presidida por GV. Poderia ter sido nossa. Não foi. Não foi por incompetência nossa que não a conquistamos. Por negligência também não foi. É difícil entender os gaúchos e os mineiros com suas artimanhas licenciosas na hora do pega-pra-capar. Mais difícil é trabalhar sob as ordens deles. Subestimamos 1930 e a miscigenação da fronteira Sul com os Estados do Centro-Oeste e do Nordeste. No fundo, no fundo, a trapalhada toda foi uma mera questão de cavalos, vacas e cabras da peste. Todos a pastarem e a trotarem impunes pelo pasto da nacionalidade burra. Subestimei 1930 e apaixonadamente incentivei 1932. Tenho de olhá-los a todos, olhos nos olhos. Um a um, olhos nos olhos. Capanema, Rodrigo, Drummond, Meyer... Como a minha presunção paulistana pôde subestimar em 1938 a acolhida despeitada que teria no Rio. Os que antes me tratavam com entusiasmo excessivo e amizade redundante de repente se tornaram reservados. Reservados, sim senhor. Repito o que disse sobre eles na carta que escrevi ao Paulo Duarte: Quanta fragilidade peidorreira, meu Deus! Graças a Deus a recíproca também é verdadeira. Como minha vaidade destroçada pelos tufões que sopravam na baía de Guanabara foi premiada pelos conterrâneos depois que regressei definitivamente a SP. E reganhou forças. Ressuscitei-me. Há um lado triste na segunda história. Querem transformar-me em santo ou em Lázaro ou pelo menos deram de me tratar como padre no confessionário. Como confidenciam com facilidade as bandalhices passadas! Não me deixo convencer pelas lamúrias e pelo arrependimento dito sincero. Penitência. Quinhentas mil ave-marias e um quinquilhão de padres-nossos. A catedral de São Paulo, por Deus! que nunca se acaba. (4) [Ficha 5] Começo a palestra pelo relato dos conflitos que, por um lado, cercaram a quase concessão do título de doutor honoris causa a Getúlio e, pelo outro, motivaram a baderna armada pelos acadêmicos no centro da cidade. Para bom entendedor e em filigrana, já estariam no relato os dois lados da moeda que o modernismo paulista fez circular pelo Brasil. Cara: o apadrinhamento dos artistas pelo dinheiro dos aristocratas do café e a reverência ao poder estadual. Coroa: a criação de um espírito novo e a irreverência aos valores passadistas, determinados pelos costumes políticos e sociais dominantes na elite brasileira. Cara: o café toma conta da cidade. Coroa: o café exportado se responsabiliza pela industrialização nacional. Cara e coroa no mesmo saco? Todos. Uma revolução nacional? Em termos. Uma revolta contra a inteligência nacional retrógrada? Estou esquentando. Uma pancada no cravo, outra na ferradura? Acertei. Nós, os paulistas, ao menos cultivamos o gosto aristocrático pelo jogo arriscado. (Aproveito a deixa e defendo a tese de que a eclosão do modernismo não poderia ter-se dado no Rio de Janeiro. Corolário 1: os aristocratas europeizados do café versus a burguesia anta, engendrada pelo dinheiro ganho à sombra do poder federal. Corolário 2: o trabalho versus a sinecura. A burguesia nunca soube perder, e é isso que a perde. Gosto do jogo de palavras; não vou deixar que se escoe pelo ralo.) Tomarão meu relato inicial como contextualização ou como desforra política? E, se tomarem como desforra, terá importância? Quando muito, O Dops [Departamento de Ordem Política e Social] vai cancelar a palestra ou obrigar os organizadores a transferirem-na de um auditório institucional para algum teatro da cidade. Ou, se a CEB conseguir o apoio da UNE (de que duvido), realizá-la em praça pública. Quem levará a melhor com a patuscada da censura? Não serão eles. Não serão os estudantes. Duvido também que seja eu. Talvez o vencedor seja o país. Mas por enquanto não custa atiçar o ego com esses sonhos de multidão. Aliás, o tom altissonante deve se impor às frases, já que, desde que Carlos Drummond publicou "Sentimento do Mundo", passou a ser de rigor nas letras nacionais. Jogo nestas fichas os dados históricos principais. Vamos ver se já nessa primeira arrumação alguma coisa de preciso se delineia. Paro. O calor me desmoraliza dos pés à cabeça. Das meias ao chapéu. Saio de casa fedendo leite de rosas pra não ficar fedendo de outra maneira. Trabalho muito, me divirto ainda mais. [Ficha 6] Abrirei a palestra com o relato do conflito. Tomarei o ponto de vista do presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, o estudante Leite Ribeiro. Ao lado de Feijó, Fernando Pereira, Licínio Pacheco e outros mais, foi ele quem teve a coragem de questionar a concessão do título ao ditador pelo Conselho Universitário. Foi intransigente a sua defesa dos notáveis que edificaram 1932. A moral dos constitucionalistas, disse ele, plantou o alicerce da universidade onde ora estudamos. Foram eles que tornaram o ensino superior uma realidade para as novas gerações. Que GV recebesse o título da Universidade do Brasil! Que nos deixasse dormir em paz! O recado enviado ao Conselho Universitário foi claro e dado desde o momento em que anunciaram a data da convenção. Na mesma hora em que esta se realizava, os acadêmicos de direito se reuniram em protesto na Faculdade. Não adiantou o interventor federal espernear lá no palácio dos Campos Elíseos. O movimento se espalhou para o largo de São Francisco e as demais faculdades. O Conselho não repensou a solicitação obscena dos centros acadêmicos. Também os presidentes dos Centros Acadêmicos, com o jovem Talarico à frente, não repensaram a infâmia por detrás da solicitação. Colocado contra a parede pelos colegas insurgentes, Talarico assumiu tudo e em nome de todos, candidatando-se a mártir (já temos um!) da causa getulista em São Paulo. Votaram todos a favor da concessão do título a Getúlio, com exceção do professor Ernesto Leme e do representante dos estudantes. A reação foi imediata. Os acadêmicos de direito se declararam em greve e promoveram passeata pelas ruas do centro da cidade. Acompanharam contritos o féretro do ditador. De volta ao largo, depositaram o caixão e atearam fogo nele. Um comício coroou o protesto. Salto os vários incidentes em bares freqüentados pelo estudantado (Viaduto, Franciscano e Pingüim), passo por cima da patuscada chamada inquérito, levada a cabo pelo Dops paulista, e vou direto à viagem de Capanema a São Paulo. Preciso de outra ficha. Tenho de ir à papelaria. Notas 1. Em duas cartas dirigidas a Murilo Miranda, Mário fala da homenagem. As hipóteses que levantamos são, pois, verossímeis. 2. Possivelmente essa ficha acolheria os primeiros versos dum poema, que Mário de Andrade não chegou a escrever. Acabou se transformando na primeira das fichas que encerram as anotações referentes à conferência. 3. Entre parênteses foram lançados na ficha versos que teriam sido ditados pela lembrança de Paulo Duarte e Juanita, perseguidos no exílio europeu pelos nazistas. Trata-se da primeira redação do poema que figurará no livro "Lira Paulistana" (1945)? Retirada do poema na sua versão impressa, esta outra estrofe justifica nossa hipótese: "Caminhos da cidade,/ Corro em busca do amigo,/ Onde está?". 4. Essa constatação (ou blague) religiosa se transformará nos dois primeiros versos de poema, hoje em "Lira Paulistana": "A catedral de São Paulo/ Por Deus! que nunca se acaba/ -Como minha alma". Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico, autor de, entre outros, "O Falso Mentiroso" e "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco). Texto Anterior: Exclusivo e fictício: Perspectiva de fuga Próximo Texto: + brasil 505 d.C.: A modernização da Turquia vista daqui Índice |
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