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+ brasil 505 d.C.
A modernização da Turquia vista daqui
Transformação do Império Otomano em república no século 20, tendo como meta a abertura para o Ocidente, oferece paralelo estimulante com a história brasileira
Boris Fausto
Houve tempo em que a Turquia
era uma referência mais constante do que se poderia imaginar na sociedade brasileira.
Sultões e seus haréns povoavam a imaginação de muitos. "Turcos" eram chamados -e ainda hoje em certa medida são,
não sem um toque depreciativo-, súditos do Império Otomano, que, na verdade, eram sírios e libaneses. Como em
seus passaportes constava a nacionalidade "turca", turcos ficaram sendo.
Em um plano mais pragmático, como
sabem os historiadores, surgiu nos primeiros anos do século 20 um movimento no Exército, cujos integrantes se intitularam "jovens turcos". Reunidos em
torno de uma revista -"A Defesa Nacional", lançada em 1911-, tendo o apoio
do marechal Hermes da Fonseca e inspirados na disciplina do Exército alemão,
onde muitos deles foram fazer treinamento militar, os "turcos" pretendiam
essencialmente modernizar o Exército e,
indiretamente, o país. Entre eles, estavam figuras como Leitão de Carvalho,
Bertholdo Klinger e o pai do general João
Batista Figueiredo, o também general
Euclides Figueiredo.
Mas por que esse rótulo de "jovens turcos"? Pela mocidade, é claro, mas também pela referência a um movimento
militar no âmbito do Império Otomano
que tinha como alvo colocar a Turquia
em compasso com o mundo ocidental.
Prova disso são as idéias que circulavam
entre os oficiais, muitos deles interessados na história da Revolução Francesa e
leitores de Rousseau, Montesquieu, Victor Hugo. Em 1908, o movimento forçou
o velho sultão Abdulhamid a recolocar
em vigor a Carta Constitucional de 1876 e
a convocar o Parlamento. Um ano depois, diante de uma contra-revolução
conservadora e clerical, os "jovens turcos" assumiram um papel de primeira
plana, ao destituir o sultão e contribuir
para colocar no trono Mehmed 5º.
Nesse Exército "sui generis", no contexto do Oriente Médio, vai se destacar, a
partir da Primeira Guerra, a figura de
Mustafá Kemal. Nascido em Salônica, na
Grécia, em uma família turca de classe
média, ele opta pela carreira militar e se
destaca no curso do conflito, já como general. O Império Otomano, eterno rival
da Rússia, perfila-se ao lado de outros
dois impérios, o alemão e o austro-húngaro, e com eles sai derrotado da guerra,
o que apressará sua desagregação.
Enquanto o sultanato, em Istambul,
capitula diante das forças francesas e britânicas, além dos gregos, que ocupam
parte do território turco, Kemal organiza
a resistência no interior,
situando seu quartel-general em Ancara -a futura capital-, então uma
cidadezinha com menos
de 20 mil habitantes. Um
longo conflito opôs as tropas revoltosas aos ocupantes estrangeiros, e somente em 1922 os kemalistas vitoriosos entraram
em Istambul.
O ano de 1923 será o do
tratado de Lausanne, revendo as condições humilhantes do anterior tratado de Sèvres e de fundação da República turca,
tendo Mustafá Kemal como seu primeiro presidente. Mustafá Kemal ganhou na Turquia o cognome de Kemal Ataturk,
"Ataturk" significando,
aproximadamente, "pai
dos turcos". Ele e seu movimento foram responsáveis por um conjunto de
medidas que deram ao
país a fisionomia própria
que ostenta nos dias de
hoje, para bem e para mal.
Sua figura se converteu em ícone da independência nacional e em herói da modernização da Turquia. Reformador autoritário, a ele farão referência seus equivalentes doutrinários em outros países,
inclusive no Brasil. Por exemplo, aparece
em escritos e entrevistas do general Góes
Monteiro, ao lado de outros personagens
considerados admiráveis, como Lênin e
Mussolini, incluído na salada de nomes
que o general gostava de fazer. Em nível
mais refinado, numa longa nota de "Sobrados e Mucambos", Gilberto Freyre
insiste na valorização da cultura material
e se refere à ação de Kemal, ao proibir os
trajes orientais, como forma de simbolizar a ocidentalização do país e mudar
sentimentos e idéias.
Nos últimos anos, historiadores da
Turquia contemporânea têm tratado de
demonstrar que o corte entre o Império
Otomano e a República turca não é tão
nítido quanto os construtores do mito
kemaliano conseguiram implantar. A revisão faz sentido, mas desde que não se
vá tão longe como as revisões costumam
fazer. O império caracterizou-se por padrões de relativa tolerância religiosa,
desde os tempos em que serviu de abrigo
aos judeus perseguidos pela Inquisição.
É verdade também que as reformas datavam já de fins do século 19 e do início do
século 20. Entre elas, uma rede de escolas
públicas e um aparelho judiciário a que
foram atribuídas muitas competências
dos tribunais religiosos.
Acrescente-se a isso que o contraste
entre o velho império dos sultões e a Turquia moderna representou uma construção com propósitos políticos bem definidos. Estabelecer o contraste entre "velhos" e "novos" tempos é uma tendência
generalizada dos movimentos revolucionários e, se quisermos um exemplo brasileiro, lembremos o corte ideológico entre a república oligárquica ou República
Velha e a nova república ou, melhor dizendo, o governo chefiado por Getúlio
Vargas, convertido este em guia paternal
do povo brasileiro.
Não obstante é inegável o ímpeto autoritário-modernizador do regime kemalista. Entre 1925 e 1928, ordena-se o fechamento dos conventos; a interdição do
uso do fez masculino e sua substituição
pelo chapéu, do véu feminino e de vestimentas religiosas; adota-se o sistema horário e o calendário ocidental, o Código
Civil suíço, os caracteres latinos na escrita. Uma revisão constitucional de abril
de 1928 suprime os artigos dispondo que
o islã é a religião do Estado turco.
As reformas não produziram o resultado desastroso que se verificaria no Irã,
cerca de 50 anos depois. Comemorações
e estátuas celebrando Ataturk se perpetuam na Turquia, o que não é pouco em
uma época em que estátuas costumam
ser derrubadas fragorosamente pelas
multidões, na Rússia, no Iraque e em outras partes do mundo.
Mais do que isso, sem ignorar as violências de governos repressivos, as ações
brutais contra os curdos, a Turquia tenta
esboçar hoje uma convivência entre democracia e tolerância religiosa que convém acompanhar de perto.
Boris Fausto é historiador e preside o conselho
acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). Escreve
mensalmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de
Cabral).
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