UOL


São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ brasil 504 d.C.

FEITICEIROS DO SABER

por José Arthur Giannotti

Mark A. Philbrick - 24.abr.2000/Reuters
Biólogo observa besouros em laboratório da Universidade Brigham Young, em Provo, nos EUA


À primeira vista parece um paradoxo: como aqueles que se dedicam à prática da razão poderiam navegar na zona cinzenta da superstição? Mas a pergunta se impõe desde que se considere que o monopólio da invenção tecnológica se tornou fonte proeminente do poder econômico e político, quer das grandes corporações, quer dos Estados nacionais, uns e outros reciprocamente determinados. Essa tese nem sempre está sendo bem compreendida, e convém retomá-la. A supremacia do novo poder não nasce da posse da melhor tecnologia, mas da capacidade instalada de vencer a corrida para criar novos objetos técnicos e efetivar teorias que possibilitem sua produção. O inegável poderio bélico dos Estados Unidos, por exemplo, não provém unicamente do domínio de uma tecnologia insuperável. Essa é a ponta do iceberg, que depende de uma extraordinária maquinaria controlando o processo de converter uma idéia científica num produto, seja ele mercadoria, seja arma encomendada pelo Estado para fortalecer seus exércitos. Não se imagine que outros Estados nacionais estejam fora dessa corrida, mas ela é vencida por aquele que dispõe da melhor rede de instituições capazes de renovar sua planta tecnológica. Há alguma dúvida de que hoje em dia os EUA se encontram nessa situação?

Novas fontes de poder
Como essa capacidade de inventar se caracteriza, quando se converte em fator crucial da concorrência capitalista? Primeiramente, ela se transforma em capital, na acepção mais simples da palavra, a saber, controle sobre o trabalho alheio. No entanto, ao contrário do capital fundiário, por exemplo, em que o monopólio da terra obriga a que uma parte dos valores criados seja entregue ao proprietário fundiário, o monopólio da invenção científica e tecnológica demarca certas fronteiras dentro das quais se criam partes do excedente da riqueza social. Por isso esse capital tecnológico, em vez de criar valor e contribuir para o desenho do capital social total, o único padrão de medida da riqueza social produzida sob a égide do capital concorrencial, coloca obstáculos no caminho que o levaria a encontrar sua própria identidade; em resumo, impede que todos os produtos se refiram a uma só e mesma média da produtividade social do trabalho. Se algumas empresas passam a ter o controle de como a nova tecnologia penetra no mercado, não há mais como imaginar que todos os processos de trabalho possam ser medidos por um único padrão baseado numa mesma produtividade socialmente determinada.


É de esperar que essa nova determinação da ciência como força produtiva e capital afete tanto sua idéia como o trabalho daqueles que a cultivam


Transformadas em forças produtivas, as ciências conferem àqueles que a controlam posições estratégicas no mercado, impossíveis de serem conquistadas por concorrentes menos preparados. Daí o enorme interesse de o Estado associar-se a essas potências da tecnociência, sendo que, ao procurar reinseri-las no quadro de uma economia nacional, nelas encontra novas fontes de poder. É de esperar que essa nova determinação da ciência como força produtiva e capital afete tanto sua idéia como o trabalho daqueles que a cultivam. Examinemos, por ora, essa última determinação. Por muito tempo, os cientistas se pensaram como sacerdotes consagrados ao culto do saber, todos eles a serviço do bem da humanidade. Por certo esse "ar de santidade" sempre encobriu disputas e rivalidades, mas não se pode negar que a pretensão de validade universal de suas teses sempre esteve acompanhada da pretensão de que seus trabalhos tivessem igualmente alcance universal e solidário. Esse aspecto prático dos cultores da razão se fez ainda mais presente quando a própria ciência, invertendo a direção que os gregos lhe imprimiram, passou a ser dirigida para o controle e exploração da natureza. Manteve-se, todavia, a crença de que cada investigador haveria de colocar um tijolo no grande edifício do conhecimento, sem levar em consideração as condições sociais de trabalho, vale dizer, do modo de produção do conhecimento científico. Seu sustento não estava assegurado pelas igrejas ou pelo mecenato estatal ou individual? A partir de meados do século 19, justamente com o avanço da sociedade industrial, o número de pessoas dedicadas à pesquisa científica passou a crescer exponencialmente. Os cientistas se convertem, então, em funcionários de institutos e universidades, estatais ou privados, tornando-se dependentes de uma combinação de fundos públicos e privados em proporções que cada país trata de conciliar com seus projetos e tradições. Em princípio, os fundos públicos financiam a pesquisa básica, e os privados, a tecnológica, embora em certas situações o dinheiro público tenha uma gestão privada, a despeito de ser mais ou menos coletiva, como acontece nos EUA.

Gerentes e geridos
Hoje em dia esse esquema é completamente subvertido pelo íntimo entrelaçamento entre ciência e tecnologia. De um lado, se uma teoria encontra logo aplicação tecnológica, de outro, essa aplicação coloca problemas teóricos que fazem avançar a ciência básica. Mas essa proximidade se torna de tal forma dependente de altos investimentos que redesenha o perfil de seus dois pólos. Investir em pesquisa resulta geralmente em altos rendimentos, mas a dificuldade está em somar recursos para que isso seja possível. Calcula-se que, dentre 10 mil novas moléculas isoladas, apenas uma venha a se tornar um medicamento, e para isso são necessários, em média, US$ 100 milhões.
Seja qual for a precisão desse dado, importa salientar que o conhecimento passa a depender de uma política de investimentos na área da ciência e da tecnologia, ou melhor, da tecnociência, e que os próprios pesquisadores, levados por esse turbilhão, se convertem em gerentes e geridos, passando a viver de modo muito distante do "otium cum dignitatem", agora reencarnado na paz do funcionário público.
Desde logo, o pesquisador se encarrega de criar uma rede de parceiros, se possível transnacional, ou então participar de uma já existente. Somente assim pode dialogar com outros pesquisadores interessados num mesmo tema ou em temas complementares e, além do mais, haurir recursos de fontes diferentes. Dependendo de vultosos investimentos, vê-se obrigado a inserir sua pesquisa básica no bojo de um projeto maior que incorpore aplicações tecnológicas, inclusive aquelas que possam resultar na melhoria de políticas públicas. E assim a pesquisa vem a ser cada vez mais desenhada pelas políticas de distribuição dos recursos, sejam estatais ou das grandes corporações, escapando, portando, do controle da comunidade científica.
Se os pesquisadores só podem ampliar, confrontar e verificar suas idéias enquanto estiverem navegando num fluxo de recursos cuja dinâmica não dominam, é o mapa da tecnociência, com suas montanhas, vales e mares, que se configura segundo políticas específicas. Não há dúvida de que essa relação não é direta, a realidade não revela segundo o montante de reais investidos na pesquisa. Quantos recursos já não foram canalizados para encontrar a cura para o câncer e a Aids? É claro que não foram em vão, pois o trabalho dirigido especificamente para encontrar remédios e vacinas se entrelaça com o trabalho propriamente teórico de conhecimento, cada vez mais preciso, da biologia molecular. Mas todos sabem que o conhecimento das doenças tropicais não avança no mesmo ritmo que o do conhecimento das doenças dominantes nos países mais ricos. Os pesquisadores de ponta, nos dias de hoje, misturam atividades empresariais com as aventuras da investigação. De manhã são pesquisadores; de tarde, dirigem uma pequena empresa de biologia molecular. Se complementam a tradicional aspiração pela fama com o desejo de abiscoitar o polpudo Prêmio Nobel, todos continuam operando dentro dos limites demarcados pela soma de pensamento e recursos que, em última instância, há de fornecer produtos esperados por um mercado que os pesquisadores não controlam.

Os pesquisadores de ponta, nos dias de hoje, misturam atividades empresariais com as aventuras da investigação; de manhã são pesquisadores; de tarde, dirigem uma pequena empresa de biologia molecular


É notável que o grande capital tanto incentiva o pesquisador como pode decretar sua morte. Vale a pena refletir sobre o exemplo de um grande produtor de novelas que, sendo marginalizado na luta pelo poder na empresa, continua a ser muito bem pago para não trabalhar em outras redes de televisão. Se a criação no "show business" é ainda mais dependente do fluxo de recursos econômicos, não é uma espécie de lente de aumento do que acontece igualmente nas ciências? Nesse setor, porém, não há monopólio da invenção.

Mérito como transgressão
Aqueles que ficam para trás nessa corrida de obstáculos, em contrapartida, ou se ensimesmam ou se contentam com aquele pacto entre medíocres, segundo o qual a carreira se mede pelo tempo de serviço, o mérito passando a ser visto como uma espécie de transgressão. Aceitar uma medida exterior não é compactuar com os processos que os marginalizam? O recurso é a auto-avaliação, imaginar que o pensamento livre de qualquer compromisso possa livrá-los dos constrangimentos econômicos e políticos. Ora, sem medida social, como vão distinguir o fazer do fazer de conta que se faz?
O pesquisador de ponta, em compensação, oprimido entre a ciência e a tecnologia, condenado a operar como investigador e empresário, compensa-se imaginando a mera atividade de conhecer, como se pudesse ser livre de qualquer compromisso, como se nunca houvesse de encontrar limites intransponíveis. A ciência tudo pode, desde que se lhe dê tempo e os meios necessários. Se a vida é, ouvi um grande biólogo dizer, uma questão de química, não valeria imaginar que um dia se chegasse a conquistar a imortalidade? E assim a lei científica deixa de ser fórmula pela qual os seres humanos orientam seus planos e atividades inseridos num mundo que sempre lhes escapa para vir a ser a chave de uma invertida caixa de Pandora. Uma vez aberta, ela dispersaria todos os bens possíveis, graças a um conhecimento tão claro como o Sol. Mas, sem sombra, o Sol não termina por cegar?

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


Texto Anterior: Livro perturba o espírito de otimistas e confirma os temores de pessimistas
Próximo Texto: + brasil 504 d.C.: Andanças coloniais
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.