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+ brasil 504 d.C.
ANDANÇAS COLONIAIS
por Evaldo Cabral de Mello
Ainda está por estudar a rotina da
mobilidade horizontal no Brasil
colonial, assunto que não tem a
ver com o tema cenográfico do
deslocamento geográfico e da expansão
territorial, como na história do bandeirantismo, mas com a existência individual, que se presta idealmente à análise
prosopográfica, uma vez organizado um
abrangente corpo de documentação biográfica. As fontes relativas à visitação inquisitorial de finais do século 16 são, a esse respeito, valiosas, indicando que na existência cotidiana dos colonos houve
mais intercâmbio regional, na acepção
social e humana da palavra, e não apenas
no econômico e político, do que sugerem
os velhos estereótipos da sedentariedade
e da monotonia inerentes a uma sociedade estratificada.
Num estudo desse tipo, certas categorias socioprofissionais teriam de ser privilegiadas: os magistrados, os militares,
os homens de negócio. O exemplo do
poeta Bento Teixeira, o autor da "Prosopopéia", é apenas um entre muitos que
se podem colher naqueles papéis. Nascido no Porto, Bento Teixeira habitou o
Espírito Santo, a Bahia e Pernambuco,
onde foi finalmente colhido nas malhas
do Santo Ofício, que o mandou de volta
para o reino. No seu depoimento, o poeta daria, aliás, o verdadeiro motivo da
sua errância: a infidelidade da mulher,
que o fazia por todo lugar objeto do ridículo público, a ponto de em Salvador lhe entornarem um urinol na cabeça.
À saída do cárcere, Bento Teixeira publicará seu poema graças à proteção do
terceiro donatário de Pernambuco, Jorge
de Albuquerque Coelho, que na sua
quinta lisboeta se recuperava das feridas
de Alcácer-Quibir, ocasião em que, segundo a lenda cultivada ciosamente pela
família, mas que lhe custará a antipatia
castelhana, cedera seu cavalo a d. Sebastião para que El Rei pudesse fugir da
mourama.
Os sam-paulistas
Há anos, estudando a guerra dos mascates, topei com
paulistas, ou sam-paulistas, como se dizia na época, que, derrotados por reinóis
e baianos na Guerra dos Emboabas em
torno dos controles das minas, haviam
participado ativamente das alterações
pernambucanas de 1710-1711, com um
ardor antilusitano, nascido da sua experiência recente de homens que haviam
abandonado São Paulo para servir nos
Palmares, chamado por amigos ou parentes que ali se encontravam desde os
tempos de Domingos Jorge Velho.
Seu descontentamento tinha também
a ver com suas reivindicações fundiárias
na região, ainda desatendidas pela coroa
depois da destruição do famoso quilombo. O fato é que a insatisfação reinante
nas fileiras sam-paulistas foi instrumentalizada por um dos chefes do partido da
nobreza na Guerra dos Mascates, Bernardo Vieira de Melo, que após a vitória
contra os comerciantes reinóis ocupou o
Recife com um contingente deles, no objetivo de garantir o controle da praça,
por ocasião da chegada da frota anual do
reino. A história da participação do "terço dos paulistas" na colonização do sertão do Nordeste já foi feita por Pedro
Puntoni, numa obra exemplar.
Aqui, limito-me a referir o destino de
um dos seus chefes, Manuel Álvares de
Morais Navarro, que após os anos de luta
optou pela sedentariedade de um engenho de açúcar ao norte de Olinda, propriedade que por isso veio a ser designada por engenho do Paulista, nome do
atual município, que há mais de meio século foi importante pólo têxtil do Estado.
Outro caso de sertanista envolvido na
Guerra dos Mascates foi o de Cristóvão
de Mendonça Arrais, que se tornou mestre-de-campo do terço de Olinda e cuja
inércia e covardia à frente da tropa da
nobreza se tornou objeto das severas críticas dos seus aliados.
Nas chamadas "alterações de Goiana",
ocorridas em fins do século 17, em protesto contra a reintegração da capitania
de Itamaracá à propriedade do marquês
de Cascais, descendente do primeiro donatário, já se havia distinguido certo Nicolau Bequimão, cujo patronímico exótico denuncia relação de parentesco com
Manuel Bequimão (ou Beckman), que
anos antes encabeçara a revolta dos colonos maranhenses contra o governador
Sá de Menezes e a Companhia de Comércio (1682).
Sabe-se que um irmão de Manuel, Tomás Bequimão, advogado e poeta satírico, fora naquela oportunidade exilado
para Pernambuco. Nicolau Bequimão
seria provavelmente filho ou irmão desse
letrado. Pela mesma época, as autoridades coloniais estiveram às voltas com
certo andarilho -que recentemente
despertou a curiosidade do historiador
Stuart Schwartz-, o qual, dizendo-se
príncipe, vagou pelo interior pernambucano com um séquito de fiéis, talvez sebastianistas inconscientes, até cair nas
mãos dos esbirros da coroa.
Outras figuras de sudestinos mais ou
menos inquietos afloram no Nordeste ao
iniciar-se, em 1817, o ciclo do que o poeta
Manuel Bandeira chamou das "revoluções libertárias". O capixaba Domingos
José Martins foi um dos chefes do movimento, quando sua loja maçônica de
Londres, onde, segundo se dizia, falira
como comerciante, o enviou ao Recife para impedir que os pedreiros livres pernambucanos se deixassem seduzir pelo
canto de sereia dos seus correligionários
fluminenses, tutelados pelo Grande
Oriente de Portugal, que havia anos, por
sua vez, se tornara satélite da maçonaria
francesa, para irritação dos ingleses.
Carreira versátil
Martins foi, como
se sabe, executado na Bahia, mas seu irmão Francisco, que ele trouxera para
Pernambuco, faria carreira militar na
Província, tornando-se, entre 1822 e
1824, um dos esteios do partido unitário
na sua luta contra os autonomistas.
O forasteiro mais conspícuo entre os
protagonistas de 17 foi o santista
Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, que,
ouvidor de Olinda, começava uma das
carreiras mais versáteis de homem público brasileiro, o que não é dizer pouco
num país em que a versatilidade política
não acarreta nenhum opróbrio.
Antônio Carlos, que era uma ponta-de-lança da maçonaria fluminense, de
que fora grão-mestre, foi deixado, por isso mesmo, à margem da conspiração,
mas, quando ela triunfou, seus serviços
foram aceitos, embora limitados à condição de assessor, não de membro, do diretório revolucionário. Na controvérsia
em torno do regime a ser adotado, ele
atuou na sombra em favor da proposta
para que se abrissem negociações com d.
João 6º, manobra destinada a infletir o
movimento na direção da monarquia
constitucional, almejada pelas maçonarias fluminense e lisboeta. Os republicanos, contudo, ganharam a parada no
curto prazo; e Antônio Carlos foi encarregado de elaborar a lei orgânica do novo
regime, fazendo-o, porém, de maneira
não discreta e tão pouco comprometedora que por muito tempo ela seria atribuída a frei Caneca.
O Andrada não desanimou na atividade anti-republicana, tanto mais que a revolução havia extinguido seu cargo, as
ouvidorias sendo odiadas como uma das
formas do despotismo e da corrupção
coloniais. Afinal de contas, a noção de república ficara desde a Revolução Francesa (1789) perigosamente amalgamada à
de democracia; e, como ele indagará à
Alçada, que não se deixou convencer e o
enviou para os cárceres da Bahia por
mais de quatro anos, que empenho poderia ter no triunfo de "uma ordem de
coisas que, roubando-lhe a paz, o arremessava às vagas de uma oclocracia tempestuosa, e, privando-o de um lugar honroso e de lucro, o reduzia a humilde
cliente de demagogos, a maior parte tirados do pó e sem mérito? Como não odiaria antes e trabalharia com afinco para
destruir um sistema que, derrubando-o
da ordem da nobreza a que pertencia, o
punha a par da canalha e ralé de todas as
cores e lhe segava em flor as mais bem
fundadas esperanças de ulterior avanço e
de mores dignidades?".
Mas o Santo Ofício não o esquecia, sendo delatado como "homem mui libertino", pois não ouvia missa, não jejuava nos dias de preceito nem permitia que sua mulher e escravos o fizessem, deixava que a capela do engenho se arruinasse
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Indulto
Antônio Carlos sondou um
magnata rural, o coronel Suassuna, concordando ambos em que "os homens de
qualidade estavam arruinados se não
ajuntarem os seus esforços para destruir
uma cabala de malfeitores". Mas Suassuna não pôde cumprir a promessa de aliciar apoios no sul da Província, notoriamente contra-revolucionária.
Um fluminense, João Antônio Rodrigues de Carvalho, também comprometeu-se em 1817. Concluídos seus estudos
de cânone em Coimbra, um valido de d.
João 6º, o futuro barão de Santo Amaro,
patrocinou suas ambições, embora parente seu escrevesse que, de tal patrocínio, ele só se aproveitara para obter um
decreto "para meter sua desinquieta mulher numa casa de correção". Regressando ao Rio com o monarca em 1808, Carvalho também se insinuou junto do almirante Sidney Smith, a quem dedicou
uma ode cantando suas proezas navais.
Graças a essas e outras influências, foi
nomeado juiz-de-fora em Goiana e depois ouvidor no Ceará, onde, indispondo-se com o governador, foi, primeiramente, acusado de bigamia, acusação
que o "incomodou terrivelmente" por se
ver "obrigado, pela honra, a separar-se
imediatamente de uma mulher virtuosa", vale dizer, da senhora cearense com
quem vivia; e depois, ao saber-se da revolução no Recife, de cumplicidade na
conjura revolucionária, motivo pelo qual
foi posto em ferros e mandado para o reino.
Carioca da rua do Ouvidor, o dicionarista Antônio de Morais Silva fora estudar direito em Coimbra, de onde fugiu
para a Inglaterra, escapando à sanha inquisitorial. Em Londres, tornou-se secretário do embaixador de Portugal, mas,
anos depois, ao retornar ao reino, teve o
cuidado de passar por Roma, onde obteve do Vaticano um indulto que o pôs a
coberto das investidas do Santo Ofício.
Só àquela altura, já quarentão e quando já havia publicado a primeira edição
do seu "Dicionário" (1789), regressou ao
Brasil, que deixara menino, para ocupar
um cargo de magistratura em Salvador,
onde contactou José da Silva Lisboa, o
futuro visconde de Cairu, a quem presenteou com um exemplar de "A Riqueza das Nações" [de Adam Smith]. Adoecendo da vista, resolveu fixar-se em Pernambuco, onde seu sogro era um dos comandantes militares da Província. Ali,
Morais Silva adquiriu o engenho novo da
Muribeca, adotando métodos avançados
de produção de açúcar e dedicando seus
ócios à ampliação do "Dicionário", cuja
segunda edição é de 1812.
Patrono do adesismo
Entretanto o
Santo Ofício não o esquecia, sendo novamente delatado como "homem mui libertino", pois não ouvia missa, não jejuava nos dias de preceito nem permitia
que sua mulher e escravos o fizessem,
deixava que a capela do engenho se arruinasse e consentia que os filhos brincassem na bagaceira com uma imagem
de são José com o Menino Jesus nos braços. Entretanto, quando a revolução republicana estourou, nosso filósofo esquivou-se de exercer a função de conselheiro para que fora nomeado e, malgrado ter casa na rua Nova, ficou pelo engenho, onde, prevendo a contra-revolução
realista, jogou no rio toda a imensa correspondência com figuras do Iluminismo português e estrangeiro.
Outros sudestinos comprometidos em
17 foram mineiros. João Carlos Mayrink
da Silva Ferrão, irmão da Maria Dorotéia
que o poeta Gonzaga transfigurara em
Marília de Dirceu, foi intitulado com razão por Sérgio Buarque de Holanda o patrono do adesismo nacional.
Mayrink viera para o Recife como secretário do governador Caetano Pinto de
Miranda Montenegro, que, antes de ser
expulso pela revolução de 1817, promoveu seu casamento numa rica família de
comerciantes da Província. O governo
republicano manteve-o no cargo, devido
à sua competência, embora ele buscasse
delicadamente escusar-se, a pretexto de
doença. Esmagada a república, Mayrink
intermediou, na companhia do inglês
Henry Koster, autor do mais saboroso livro que estrangeiro algum escreveu sobre o Nordeste colonial, a rendição do
Recife, que fora bloqueado pela esquadra
de Rodrigo Lobo. E o que é mais, perseguido pela Alçada, que o reputava subversivo, o próprio governador Luís do
Rego Barreto o escondeu em palácio, patrocinou sua fuga para a França e obteve
sua reabilitação junto do Rio.
Em 1824, por ocasião da disputa entre
Pais Barreto e Manuel de Carvalho Pais
de Andrade em torno da presidência da
Província, disputa que desaguará na
Confederação do Equador, Mayrink foi
escolhido como tertius e nomeado para
o cargo por d. Pedro 1º, que nunca lhe retirou sua confiança mesmo quando ele
se recusou a assumir a função sob a
ameaça de morte dos carvalhistas, o que
lhe valerá um século depois a condenação do historiador Tobias Monteiro. Passada a borrasca, o imperador confirmou-o na função e depois o escolheu na
lista de senadores pela Província, que representou até sua morte no Rio.
Um segundo mineiro envolvido em 17,
mas que não teve o mesmo êxito de Mayrink, foi Luís Fortes de Bustamante, natural de Ouro Preto e que conseguira em
Pernambuco um lugar de escrivão. Entre
os revolucionários, sua popularidade derivava da aura de inconfidente, a qual,
autêntica ou não, ele cultivava ou permitia que cultivassem, com a discrição manhosa dos seus conterrâneos, embora,
vitorioso o movimento, dois dos seus filhos se tornassem "militares ardentíssimos", no registro de fonte coeva. O mesmo cronista assinala, porém, que aos primeiros sinais de malogro da república,
Bustamante "esmoreceu"; e "uma negra
melancolia, devorando-lhe a alma, lhe
fez resfriar as primeiras ardências a fim
de parecer menos culpado quando se
realizassem os funestos presságios".
Sua tática foi recompensada, sendo
solto com os filhos graças a poderosas intercessões, fugindo todos para os Estados Unidos, exceto as senhoras da família, protegidas por um parente importante, o governador do Ceará, o qual,
embora se abstivesse de visitá-las para
não se comprometer, ajudou-as financeiramente por intermédio do ajudante
de ordens.
Exemplo de gratidão
Na sua crônica, o padre Dias Martins menciona um
terceiro natural das Minas, o padre Silvestre José da Costa Ferraz. Capelão do
governador Caetano Pinto, professor de
filosofia em Goiana e de gramática latina
no Recife, ele deixou um belo exemplo
de gratidão. Preso Caetano Pinto, o sacerdote advogou, "quanto lhe podiam
permitir as trovoadas da revolução, a
causa do seu benfeitor", prestando-lhe
"todos os bons ofícios da mais grata amizade", a ponto de acompanhá-lo à corte
malgrado os convites dos revolucionários, que reconhecidos à maneira cordial
por que ele sempre os havia tratado, procuraram obter sua adesão ao regime republicano. No Rio, porém, suas ligações
na Província tornaram-no suspeito, fazendo-o também dar com as costas nos
cárceres da Bahia.
Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de,
entre outros, "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O
Negócio do Brasil" (ed. Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C.".
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