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O futuro de um gênero
Donaldo Schüler
especial para a Folha
Que o gaúcho é uma criação literária não nos soa estranho. O
gênero gauchesco é produto
urbano, cultivado por autores
saudosos da vida pastoril. Contribuição
decisiva para a construção do homem
sul-rio-grandense veio de José de Alencar, em "O Gaúcho". O romancista dotou o vaqueiro das campinas meridionais das qualidades do brioso herói que
se bate pela liberdade. A criação alencariana impressionou até mesmo a mente
iluminada de Euclides da Cunha. Tomando o gaúcho literário como real, o
autor de "Os Sertões" o opõe ao sofrido e
resistente sertanejo da Bahia.
Josefina Ludmer retoma, em "O Gênero Gauchesco", a palavra "gênero" em
seu sentido originário, como genos, como nascimento de formas literárias, mas
também como lei, legislação, legitimação. O que nasce entra na lei da escrita. A
escrita não mimetiza o observado, cria
universos literários. A escrita funda tradições, feitas de repetições, variações,
convenções. Ludmer aventa três gêneros
para a América Latina: o gauchesco, o indianista e o anti-escravagista. Detém-se
no gênero gauchesco, que nasce durante
a guerra da independência às margens
do Prata e termina em fins do século 19.
O Exército "patriota" arregimenta o
"delinquente" gaúcho. A literatura culta
o acolhe com seus hábitos linguísticos.
Comparecem o uso literário da voz e o
uso militar dos corpos. O Exército e a
poesia confraternizam, completam-se. A
literatura gauchesca, politizando a polaridade civilização-delinquência, propicia
a passagem de um pólo a outro.
Visto que a literatura gauchesca molda
o perfil do gaúcho, transformando-o de
delinquente em patriota, o primeiro locutor fictício da literatura gauchesca é o
gaúcho que exalta a pátria. O gênero se
constrói no movimento da ida (à barbárie) e da volta (à civilização). Na oposição ida e volta, se equilibra "Martín Fierro" [do argentino José Hernandez (1834-86)]. O herói, que se perde na barbárie, se
reequilibra ao retornar à civilização.
Vemos no ensaio de Ludmer a retomada de uma tese de Lévi-Strauss, exposta
em "Tristes Trópicos". Para o antropólogo, a escrita é dominadora em si mesma.
Um chefe nhambiquara apropria-se dela
para reforçar sua autoridade sobre a sua
tribo ágrafa. A questão é complexa. Contestando Lévi-Strauss, Derrida, ao afirmar que nem toda escrita é alfabética,
desloca a escrita para a origem.
Por esse viés, os povos sem alfabeto são
muitos, mas povos sem escrita não há.
No caso da literatura gauchesca, haveria
que examinar a contaminação da escrita
ao acolher vocabulário, ritmos, sons,
atos segregados. No Brasil, Simões Lopes
Neto transforma o falar gauchesco em
língua literária. Em "Grande Sertão: Veredas", a voz rude do interiorano Riobaldo silencia a voz urbana do doutor.
Ludmer pensa que a revolução literária
acontece quando "Martín Fierro", popularizado, transforma a oralidade. Mas a
passagem já se dá em Picardia [personagem desse romance], invenção literária
que afeta a escrita. Admitida a circularidade vitalizadora de oralidade e escrita,
podemos acompanhar o processo em
andamento aqui desde "Iracema" a
"Macunaíma". Como poderia a escrita
represar, se ela é dinâmica por natureza?
Palavras definem e transgridem fronteiras rumo ao vedado, ao segregado, ao
indefinido. O movimento de ida e volta
aproxima opostos a ponto de os fundir.
A barbárie é uma força revolucionária
dentro da própria civilização. A circulação é sustentada pelo ciclismo viconiano
da prosa de Joyce, que implode e renova
a língua do dominador. Vozes confraternizam e se hostilizam num gênero vivo e
ativo que não pára de gerar.
O entrecruzamento de textos mina hegemonias sem excluir a autoral. O ensaio
encerra com Picardia. Por não conhecer
mãe nem pai, o personagem já não está
preso aos antepassados como os heróis
consagrados. Nada impede que se lance
ao futuro, a uma pátria sem fronteiras.
Ludmer, ao lembrar que o ensaio foi
concebido durante a ditadura militar e
escrito durante a democracia, insere no
texto sua própria biografia.
Donaldo Schüler é ficcionista, ensaísta e tradutor de "Finnegans Wake" (ed. Ateliê), de James Joyce.
O Gênero Gauchesco
309 págs., R$ 33,00 de Josefina Ludmer. Trad. de Antônio Carlos Santos. Argos (r. Senador Attílio Fontana, 591-E, CEP 89809-000, Chapecó, SC, tel. 0/xx/ 49/321-8218).
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