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+ cinema
Nova safra de filmes produzidos nos países árabes enfoca a situação da mulher,
como o da diretora tunisiana Moufida Tlatli, que prepara uma Scherazade feminista
UMA CÂMERA NA MÃO E UM VÉU NA CABEÇA
Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha
Um dos mais vivazes destes tempos, o cinema árabe tem sua bienal programada pelo Instituto do
Mundo Árabe, em Paris: uma
mina, que vai do Magreb à Palestina. Eclética, a mostra [encerrada neste mês] inclui
tanto filmões de padrão hollywoodiano
quanto documentários e curtas; e, entre estes, trabalhos ficcionais de futuros cineastas experimentando a mão. Embora a seleção se prenda ao período de 2002-4, também resgata obras célebres, como "Le Veilleur de Nuit", de Khalil Chawki (Iraque,
1967) ou "Alia et Issam", de André Shatan,
mais recuado ainda (Iraque, 1948). A presente edição homenageou o Iraque, de onde já provieram obras realizadas sob bombardeio, depois da invasão.
Duas surpresas correlatas aguardam o
espectador. A primeira é que as mulheres
atraiam com freqüência as lentes da câmera; veja-se "Soraïde, Une Femme de Palestine", de Tahani Rached (Egito, 2004), ou
"Les Irakiennes... Une Voix de l'Exil", de
Maysoon Pachachi (Iraque, 1993), ou ainda "Fatima, l'Algérienne de Dakar", de
Med Hondo (Mauritânia, 2004). A segunda é ver tantas diretoras praticando a arte
em tantos países, como em "Entre Femmes", de Hala Gatal (Egito, 2004); "Sol
Mouillé", de Lamia Gargache (Emirados
Unidos, 2003); "Dans les Champs de Bataille", de Danielle Arbid (Líbano, 2004); ou
no docudrama curto, realizado em meio à
conflagração, "Comme Vingt Impossibles", de Annemarie Jacir (Palestina,
2003); mas há bem mais.
A forma da opressão
A arrancada
das cineastas mal completa uma década.
Algumas já são profissionais reconhecidas,
como é o caso de Samira Makhmalbaf, filha de Mohsen Makhmalbaf. Este, dividindo com Kiarostami ("Gosto de Cereja") o
posto de mais reputado diretor iraniano,
assinou "O Caminho para Candahar", de
tantas láureas, feito em cima da invasão do
Afeganistão. Pode-se até perdoar-lhe a elaboração de uma estética da burga, tornando-a bela. Surgiu como um artista a ser levado em conta quando fez "Salvem o Cinema!", todo constituído de audições para
teste, em que ele mesmo era representado
por um ator. O cinema iraniano há muito
ocupa as preferências por sua originalidade e independência: aos vinte e poucos
anos, Samira já é a elogiada autora de "A
Maçã", de "Depois das Cinco da Tarde" e
de um dos episódios do filme "9/11". Com
"Blackboards", recebeu o prêmio do júri
em Cannes, em 2000.
Outra de invejável poder de fogo é Moufida Tlatli, da Tunísia, que acaba de lançar
"Tempo de Espera" (2003) e está preparando uma Scherazade feminista. Seu filme aqui exibido com o título de "Os Silêncios do Palácio" (1994), ganhador de prêmios internacionais, merece destaque porque vai fundo na condição feminina sob o
islamismo. Simbolizando a opressão, um
elemento formal, a elipse, comanda o arcabouço: a de som (o silêncio do título) e a visual. Ambas têm seu avesso no voyeurismo: há sempre alguém espreitando, por
trás de um reposteiro, na frincha de uma
porta ou no reflexo do espelho, por onde o
espectador vislumbra as piores brutalidades, como o aborto e o estupro.
Focalizada nos "mundos ínferos" do palácio, a câmera se atém ao reino da criadagem, gineceu constituído pela cozinha e
anexos, situados um andar abaixo do edifício principal. São mulheres e empregadas,
portanto vítimas de dupla exclusão: não
podem falar e não podem aparecer. O silêncio, sinal de submissão, desabrochará
na voz que canta, que garantirá à protagonista, filha bastarda da cozinheira com o
príncipe, a via de fuga do palácio rumo a
uma vida profissional autônoma como
cantora.
Estigma da burga
Uma ausência chama a atenção do espectador nessa bienal: a
do véu (burga, "chador" ou "abaya"), propagandeado pelo Ocidente como estigma,
quando raro é o país árabe em que ainda
tem vigência. A registrar que seu bastião é
a Arábia Saudita, aliada número um dos
Estados Unidos, onde se chama "abaya" e
é obrigatória por lei oficial, não por imposição religiosa. A mesma lei, entre outros
rasgos de cavalheirismo, proíbe ao sexo
frágil votar, dirigir veículos e ocupar cargos no serviço público. Bem que carecia
uma invasão americana, para acabar com
tais afrontas à democracia.
Do livro ao filme: até agora, na África, as
mulheres vêm se servindo sobretudo da literatura para discutir sua condição e contestar seu jugo. Os romances da sul-africana Nadine Gordimer por meio século tiveram esse papel, assim como os da rodesiana Doris Lessing e hoje os da moçambicana negra Paulina Chiziane. As mulheres
árabes, em número cada vez maior, empunham a câmera como arma de luta por sua
emancipação. Vale a pena acompanhar esse percurso.
Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP. É autora de, entre outros, "No Calor
da Hora" e "Guimarães Rosa" (Publifolha).
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