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Ponto de fuga
Uma casa portuguesa
O livro "Modelos Portugueses e Arquitetura Brasileira",
de Roberto Lima (ed. Ype), trata da arquitetura "corrente"
no Brasil do século 19 e do começo do século 20. São edificações bastante homogêneas. Foram concebidas, como a
observação mais simples pode constatar, dentro um sistema construtivo e de um código de formas clássicas, presentes em todo o país.
Muito pouco se sabe a respeito delas. Até agora, salvo raras e honrosas exceções, não foram estudadas de fato. Na
antiga tradição especulativa própria à história da arquitetura brasileira, levantaram-se algumas hipóteses, traçaram-se raciocínios abstratos de natureza ensaística, chegou-se a conclusões temerárias, mas afirmadas com foros
de verdade.
Por exemplo, atribuiu-se com facilidade a gramática arquitetural dessas cidades brasileiras do oitocentos à imigração italiana. Esquecia-se que ela estava presente mesmo onde os italianos não se encontravam, que não correspondia ao que se construía na Itália de então, que surgiu
antes mesmo da chegada dos peninsulares.
Não se pensou que um vínculo, historicamente mais
plausível, poderia ser estabelecido com a arquitetura lusa.
Aí está a grande importância do livro. Seu método é empírico: levantar, nos dois países, uma amostragem suficiente
para a comparação, ir a campo, colecionar tipos e modelos, classificar, cotejar. O autor não pretendeu alargar seu
corpus ao Brasil todo nem percorreu Portugal inteiro. Mas
o conjunto é suficientemente expressivo e probante para
que salte aos olhos a filiação ou o parentesco.
Habite-se - Andrea Palladio, arquiteto máximo do Renascimento, crucial nas tradições clássicas do Ocidente, povoou de "ville" (casas suntuosas em propriedades rurais) o
nordeste da Itália, sobretudo a região em torno da cidade
de Vicenza. Deixou definições claras, no segundo dos quatro livros que consagrou à arquitetura, referentes às "case
di città" (casas de cidade) e às "case di villa" (casas do campo). Scamozzi, seu discípulo e continuador, teórico ele
também, introduz um terceiro termo, intermediário, à dupla polaridade de Palladio: as "ville suburbane".
Com o título "Intorno alle Ville", foram publicados recentemente os seis capítulos de "L'Idea dell'Architettura
Universale", de 1616, em que Scamozzi descreve a natureza das moradias rurais e semi-rurais, com ótimo aparato
crítico de Lionello Puppi e Lucia Collavo (ed. Allemandi).
Scamozzi tem preocupações "funcionalistas" na organização dos edifícios, nas construções utilitárias, além dos aspectos de admirável equilíbrio clássico. "Comodidades",
como se dizia então, e beleza, juntam-se numa reflexão paradigmática.
Fidalgo - Palladio evoca os benefícios, para os proprietários, das "case di villa", em seu texto publicado no ano de
1570: "O tempo será passado vendo e ornando suas posses,
e, com indústria e arte da agricultura aumentando as faculdades pelas quais, também pelo exercício que na "villa"
se costuma fazer a pé ou a cavalo, o corpo mais facilmente
conservará sua saúde e robustez, e onde, finalmente, o ânimo cansado das agitações da cidade tomará muito repouso e contemplação".
Lições - Scamozzi assinala tudo com minúcia. Eis o que diz
sobre aos cômodos destinados a "expurgar a natureza":
"Primeiro, esses lugares deverão ser de fácil acesso aos
apartamentos da casa e separados, de modo que não estejam sob os olhos de ninguém nem provoquem fedor ou
náusea. (...) E sobretudo o das mulheres sejam separadíssimos e secretos, mas não escuros, para evitar inconvenientes que costumam acontecer. (...) As famílias grandes e numerosas, assim como as cortes dos príncipes e senhores,
têm então necessidade de muitos lugares conjuntos para
as comodidades naturais, que devem ser grandes e de boa
capacidade, de modo que possam servir de uma só vez a
muitos. Que se encontrem em alguma parte fresca e fora
de mão daqueles que passam pela frente ou por trás, para
impedir totalmente que vejam ou sintam, de algum modo,
esses efeitos e signos da nossa humana imperfeição".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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