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José Miguel Wisnik
O gol de Romário contra a Holanda, na Copa de 94,
desafia o senso comum e o senso incomum. Gostei
de ficar sabendo, na época, que Tostão, então comentarista da TV Bandeirantes, teria pedido, nos bastidores,
que repetissem o lance durante 15 minutos seguidos para que ele, Tostão, tentasse entendê-lo. E tenho certeza
de que o gol, ainda assim, resiste ao entendimento.
Bebeto cruza rasteiro da esquerda para o centro da
área, onde Romário já se projeta frontal e livre da marcação. Ao interceptar a trajetória da bola, o atacante dobra a perna esquerda, como quem vai chutar com ela, mas chuta na verdade com o lado de fora do pé direito,
depois de saltar, numa fração de segundo, sobre essa
mesma perna. Nada na força do hábito, corporal ou visual, diria que o chute viria dali, quanto mais tão límpido, certeiro e instantâneo. Um comentarista esportivo,
acho que americano, comparou o movimento, com
propriedade, a uma ferroada fatal. Podemos falar, também, em um raio de saci-pererê em céu azul, de uma
objetividade atordoante.
Gols como esse são lances de pura precisão poética,
intraduzíveis no ramerrão da prosa. Numa rigorosa
elipse paradoxal, Romário chuta não chutando. E o pasmo da página em branco? No terceiro gol do mesmo jogo, na falta cobrada por Branco, Romário passa instintivamente através da bola sem tocá-la e sem se deixar tocar, seguido cegamente pelo marcador medusado, num
embaralhamento das linhas de sentido que dá um curto-circuito na expectativa do goleiro. No segundo gol,
Romário, impedido, vem voltando tão aparentemente
alheio, diante de uma bola lançada em jogo, que toda a
defesa holandesa também pára, num equívoco fático,
que deixa o caminho praticamente aberto para a entrada legal de Bebeto.
Perícia e estúcia geniais de quem se apresenta e ausenta e sabe estar não estando, nos três momentos, em uma
outra dimensão do tempo do jogo. Tudo isso se refere
ao segundo maior artilheiro do futebol brasileiro em todos os tempos, de uma longevidade inequívoca e surpreendente. Acredito que o realismo terra-a-terra não sabe mesmo o que está perdendo.
José Miguel Wisnik é músico, compositor e professor de literatura
brasileira na USP. É autor de "O Som e o Sentido" (Companhia das Letras) e "O Coro dos Contrários" (ed. Duas Cidades).
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