São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002 |
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André Sant'Anna
O Delei lançou o Assis no lado direito da intermediária deles. O Assis, com a bola dominada, entrou
na área, sozinho, e logo já chutou no canto esquerdo, a
meia altura. O Raul ficou no meio do caminho, sem saber se ia no Assis ou se ficava esperando o chute. Não fez
nem uma coisa nem outra e tomou o gol. A torcida do
Flamengo estava gritando é campeão é campeão é campeão e eu eu eu Fluminense se fudeu e parou de gritar.
Foi aos 45 e poucos. A torcida do Fluminense começou
a gritar é campeão é campeão é campeão e eu eu eu o
Flamengo se fudeu. Eu fiquei muito feliz. Um amigo
meu, flamenguista, bem feito, quando estava em casa,
de noite, na cama, sozinho, depois do "Fantástico", assistindo à mesa-redonda de uma emissora menor, na
TV, sentindo um ódio primitivo por um de seus semelhantes, eu, que era o tricolor mais próximo, descobriu
que a vida é assim: uma sequência de campeonatos delimitando espaços de tempo na memória, num revezamento ilógico de vitórias e derrotas que provocam
emoções díspares, prevalecendo as angustiantes; uma
condenação à vergonha de ser impelido a praticar esquisitices como o Método Silva de Mind Control e a Figa do João Pelado apenas para tentar garantir uma felicidade artificial provocada por uma vitória da qual você
não fez e nunca fará parte, já que você sabe que o Método Silva de Mind Control e a Figa do João Pelado não interferem em nada no resultado de uma partida de futebol, e que aquele gol do Roberto Dinamite, contra a Polônia, em 1978, na copa da Argentina, logo depois de você ter feito a Figa do João Pelado, foi mera coincidência,
já que a Figa do João Pelado nunca mais funcionou em
jogo nenhum; uma ilusão provocada por miolos, sangue e ligações elétricas entre neurônios, na qual não há a
menor possibilidade da existência de Deus, muito menos de um Deus que em algum momento de necessidade possa resolver algum de seus inúmeros problemas,
os quais você tenta sublimar, transferindo psicologicamente para um time de futebol a responsabilidade de
superar seus recalques e frustrações por saber que é um
ser humano medíocre, que, ao invés de realizar algo de
realmente importante, fica esperando o seu time vencer, com a intenção suja de se vingar do seu amigo tricolor pelo fato de ele ser uma pessoa muito melhor do que você, em todos os aspectos, inclusive na escolha do time
para o qual torce. André Sant'Anna é escritor, autor de "Sexo" (7 Letras). Texto Anterior: Hans Ulrich Gumbrecht Próximo Texto: Clóvis Rossi Índice |
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