|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ sociedade
O CIENTISTA POLÍTICO ADAM PRZEWORSKI, DA UNIVERSIDADE DE NOVA YORK,
AFIRMA QUE O CRESCIMENTO ECONÔMICO NÃO BASTA PARA DETER O DESEMPREGO
ESTAÇÃO DE CAÇA
José Galisi
especial para a Folha
Com exceção dos integrantes das centenas de organizações terroristas que espalham, em regime de
trabalho flexibilizado, o "retrovírus da política"
-nas palavras do ensaísta alemão Hans Magnus
Enzensberger- na forma do câncer da guerra civil molecular, falta à maioria um emprego estável ou mesmo flexibilizado. Num mundo com 800 milhões de desempregados ou subempregados, o maior percentual desde a "grande depressão", o êxito do terror global nos oferece, todos
os dias, uma visão cada vez mais obscena do que significa
essa "flexibilização" do trabalho e da "sociedade do risco"
como minigenocídios cada vez mais banais e instantâneos. Na base material desse desenvolvimento, está o fato
de que hoje a população mundial economicamente ativa é
apenas 5% maior do que aquela de 1960, como observa o
professor de ciência política da Universidade de Nova
York Adam Przeworski, autor de "Capitalismo e Social-Democracia" (Cia. das Letras), em entrevista ao Mais!.
Partindo da irredutibilidade sistêmica entre Estado e
mercado -isto é, da forma pela qual este perdeu sua capacidade reguladora de alocação do trabalho e da renda,
enquanto o que sobrou do Estado de Bem-Estar Social, na
sua versão keynesiana providencial, abdica de seus últimos resíduos utópicos para restaurar o pleno emprego-,
Przeworski postula que as regras do processo democrático
não poderão jamais resolver os problemas derivados da
desigualdade econômica.
Num círculo vicioso, a expansão dessa desigualdade entropiza a capacidade de ação dos Estados no espaço cada
vez mais rarefeito dos movimentos do capital globalizado
pela sangria tributária num "low level trap" [armadilha de
baixo nível].
Esse esvaziamento se traduz nos slogans dos atuais governos, como o "fiasco" exemplar, diz Przeworski, da Terceira Via e a impressão de que ninguém mais está no comando. Se o déficit público é uma irracionalidade econômica e, a miséria, uma irracionalidade social, como seria
possível ainda sustentar politicamente um padrão civilizado de justiça social combinado com a proteção da esfera
da liberdade individual -uma liberdade que não significa
hoje outra coisa a não ser o direito elementar ao trabalho.
A despeito dos altos índices de desemprego, como seria
possível aos governos manter um mínimo de legitimidade
no processo democrático, convencendo os grupos menos
favorecidos de que a democracia ainda oferece vantagem
como promessa de cidadania e proteção social diante do declínio econômico?
De duas maneiras que devem vir juntas: pela promoção ativa do emprego e pela inclusão da promoção do
emprego como aspecto integral das políticas sociais. As
razões do alto índice de desemprego são muito variadas, de modo que o problema não tem uma solução
única. A idéia de que o desemprego pudesse ser erradicado simplesmente pelo aumento da demanda pertence ao passado.
É verdade que algumas pessoas ficam desempregadas porque as taxas de juros são altas e a demanda é
baixa. Mas muitas não conseguem achar emprego que
lhes dê uma renda porque não são suficientemente
qualificadas, muitas em razão dos obstáculos burocráticos ao trabalho autônomo, algumas por problemas de
saúde, algumas porque simplesmente não sabem procurar emprego e outras simplesmente porque não se
alimentam o suficiente para conseguir trabalhar. Logo,
para aumentar a oferta de empregos é preciso promover toda uma gama de políticas voltadas especificamente a cada uma das causas.
A meta das políticas sociais não deve ser apenas a
proteção -deve ser capacitar as pessoas a ganhar renda. Isso pode ser conseguido direcionando os investimentos -por meio de empregos governamentais diretos ou de incentivos fiscais- aos lugares onde poderão
gerar mais empregos e incluindo a geração de empregos como critério de políticas educacionais, de saúde e
outras políticas sociais. As políticas de crédito subsidiado e garantido também constituem um instrumento
importante, já que os pobres não possuem garantias
reais e não podem contrair empréstimos comerciais,
mesmo a juros baixos.
Os problemas de insatisfação política e falta de confiança no governo vão permanecer. Não acho que eles
constituam uma ameaça à democracia, mas levam as
pessoas a se sentirem politicamente impotentes e, portanto, revoltadas. Por esse motivo também são necessárias reformas políticas que confiram à população
mais controle sobre sua vida coletiva.
Se a jurisdição do Estado nacional foi, até agora, o instrumento territorial da cidadania, seu declínio diante dos processos sistêmicos e abstratos da nova concorrência econômica internacional desloca a questão pela democracia para
um outro plano. Qual seria a instância que ainda poderia
garantir a universalidade desta cidadania, sem ser esmagada por um Estado ou agente capazes de impor suas próprias
regras ao jogo?
Como já é largamente reconhecido, a globalização chegou para ficar, quer seja sob a forma do aumento do comércio, dos movimentos de capital ou da interdependência política. Ela não pode ser revertida e não o será.
Mas seus efeitos podem ser administrados. Eles podem
ser administrados no nível internacional, reduzindo-se
a influência dos países desenvolvidos sobre as normas
sob as quais ocorrem o comércio, os fluxos de capital e
as interações políticas.
Da maneira como estão hoje, essas normas são altamente prejudiciais aos países em desenvolvimento.
Como mostram as ações recentes do governo brasileiro, essas normas podem ser modificadas pela criação
de coalizões entre países em desenvolvimento. É necessário, com toda certeza, que sejam reduzidos os subsídios agrícolas e várias restrições às importações praticadas pelos países desenvolvidos.
Os efeitos da globalização no nível nacional são difíceis de enfrentar, em parte porque ainda não sabemos
até que ponto os crescentes desemprego e desigualdade
são frutos da globalização ou de outros fatores, especialmente as mudanças tecnológicas. Entretanto, embora a globalização de fato imponha restrições, ainda
existe muito espaço, dentro dessas restrições, para os
governos cobrarem impostos, promoverem o emprego
e protegerem o bem-estar social.
O debate sobre a falta de uma política social em nível federativo e a necessidade de definir uma política externa comum efetiva para o futuro da União Européia mostram que
a esquerda continental não tem conseguido transmitir
mensagens claras a seus eleitores. Como a ampliação da UE
afetará o futuro da democracia social na Europa?
É muto difícil separar o efeito da ampliação de outras
tendências. Não sou favorável a que a luta pelos direitos
sociais focalize a discussão constitucional. A inclusão
de direitos sociais em constituições pode orientar a
evolução de longo prazo das políticas governamentais,
mas essas são "causas adormecidas", na medida em
que não são legalmente implementáveis. Dizer que a
Constituição garante o emprego pleno ou um padrão
de vida decente revela ser exortatório quando as condições econômicas não o permitem. Cláusulas como essas enfraquecem o prestígio da Constituição.
Não me entenda mal. Acredito que o Estado de Bem-Estar europeu está em risco e precisa ser reformado e
ampliado, em especial para garantir um atendimento
melhor na saúde e educação contínua. Mas não acredito que a Constituição seja o caminho correto para chegar a isso.
Quanto à democracia social européia, acho que está
totalmente desorientada. Previsivelmente, a chamada
Terceira Via se revelou um fiasco total, e os social-democratas europeus parecem estar totalmente destituídos de idéias, até mesmo de slogans. O único governo
socialista que dá algum sinal de vida é o espanhol, mas
mesmo ele não sabe o que fazer com o Estado de Bem-Estar Social.
A soberania que foi devolvida ao Iraque é apenas formal.
Quais seriam então as chances de uma "democracia" diante
do terrorismo e violência diários. Haverá alguma chance de
estabelecer algo como segurança no Iraque?
A idéia de democracia no Iraque não passa de um artigo de propaganda da administração Bush. Implantar a
democracia em um país profundamente cindido por
divisões religiosas, étnicas e tribais, que nunca foi democrático e cujo aparato de Estado foi destruído por
inteiro é uma fantasia da imaginação dos ideólogos de
Bush, que não faziam idéia daquilo em que estavam se
metendo. E o que eles querem dizer com democracia?
Se o Afeganistão conseguir realizar uma eleição que
confirme no cargo o presidente indicado pelos EUA, isso fará dele uma democracia?
A democracia pode surgir no Iraque a longo prazo se
os diversos grupos encontrarem uma maneira de processar suas divergências de acordo com as regras, mas
ninguém de fora poderá implantar a democracia no
Iraque. Quanto à paz e à segurança, elas podem ser restauradas, mas serão impostas e mantidas pela força.
Depois do 11 de Setembro, os EUA arrogam para si uma
doutrina de ataques preventivos, ignorando seus aliados
europeus. A retirada das tropas espanholas do Iraque depois de 11 de março deste ano [quando terroristas atacaram um trem em Madri, deixando pelo menos 191 mortos] é
considerada por muitos uma vitória democrática do eleitorado. Como o sr. vê esse conflito?
Acho que participar da guerra nunca foi do interesse da
Espanha e respeito profundamente a coragem de Zapatero [primeiro-ministro] em resolver o problema de
maneira pronta e decisiva. De qualquer maneira, era isso o que a população espanhola queria.
Agora que os EUA se meteram nessa confusão, estão
tentando conseguir que outros países os resgatem dela.
Ao mesmo tempo, os EUA não querem abrir mão do
controle nem sobre o governo iraquiano nem sobre as
forças internacionais, de modo que a situação não parece ter solução. Talvez, se [o candidato democrata
John] Kerry vencer a eleição, o que não é impossível,
ele se disponha a formar uma coalizão real que trabalhe
no sentido de restaurar a paz no Iraque -é isso, pelo
menos, o que ele diz. Do ponto de vista iraquiano, essa
seria a melhor solução.
Quais são as chances de expansão do Mercosul?
Não acho que ampliar o Mercosul seja muito importante. O único país que importa até certo ponto, porque sua economia é suficientemente grande, é o México, que é ligado aos EUA pelo Nafta [sigla em inglês para Acordo de Livre Comércio da América do Norte].
Talvez seja mais importante que os países latino-americanos cheguem a uma posição sobre negociações comuns quanto a questões comerciais e a subsídios.
O preço social da inovação tecnológica geralmente é muito
pesado e não decorre necessariamente dos efeitos do processo de globalização. Seria um erro conceitual vinculá-la
de maneira tão direta às estratégias do capitalismo global?
Meu ponto de vista é o de que a globalização facilita as
transferências de tecnologia, mas que os governos precisam ser capazes e se dispor a gastar dinheiro para
aproveitá-la. Em um mundo competitivo existem três
classes de países: os inovadores, os imitadores e aqueles
que ficam para trás (ou seja, os que não fazem nenhum
avanço tecnológico). Para inovar, um país precisa financiar não apenas as pesquisas aplicadas mas também
as básicas, e isso custa muito caro -é algo que está fora
do alcance de quase todos os países, talvez até mesmo
dos países da Europa Ocidental.
A imitação é uma estratégia que pode ter sucesso, como mostra o caso do Japão. Mas mesmo imitar custa
caro. Requer investimentos significativos em pesquisas,
desenvolvimento e educação em todos os níveis. Alguns países gastam tão pouco nesses setores que não
conseguem nem sequer imitar. Manter um nível razoável de investimento em ciência e tecnologia e organizar
bem esse investimento são condições necessárias para
que os países possam beneficiar-se com a globalização.
Novamente, os efeitos desta dependem de como ela é
administrada internamente.
Seria a globalização cultural um processo democrático?
Diante desse fato, coloca-se em questão a idéia de uma democracia cosmopolita, baseada em princípios universalistas, como algo limitada a princípios "ocidentais", isto é, a
um conceito ocidental de modernização reflexiva. Como a
democracia se encaixa neste argumento?
Sou profundamente hostil a tais argumentos. Como já
disse o economista indiano Partha Dasgupta, a visão de
que os pobres não se importam com as liberdades associadas à democracia "é uma insolência que parece ser
praticada apenas por aqueles que não sofrem a falta
dessas liberdades".
Há cem anos os europeus enxergavam a democracia
como um privilégio reservado aos países "civilizados",
e foram necessárias muitas lutas, algumas delas sangrentas, para que as pessoas de outros continentes conquistassem direitos democráticos. É simples falsidade e
má-fé de parte dos intelectuais contrários à globalização afirmarem agora que a democracia é um valor ocidental. Não temos democracia demais, temos democracia de menos.
Quais são as questões-chave para os sociólogos neste início
de século?
São três: desigualdade, desigualdade e desigualdade.
José Galisi é doutor em germanística pela Universidade de Hanover, na
Alemanha.
Tradução de Clara Allain.
Texto Anterior: Anjos do arrabalde Próximo Texto: + livros: Liberdade vigiada Índice
|