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"Terrenos Vulcânicos" reúne ensaios do alemão Dolf Oehler que abordam a estética
de Baudelaire, Flaubert e Delacroix, rebatendo críticas como as de Brecht e Sartre
LIBERDADE VIGIADA
Kathrin Rosenfield
especial para a Folha
Há livros que nos dão vontade de
imitar Pierre Ménard: estancam
veleidades criativas e nos convidam a simplesmente copiar
-palavra por palavra. É um privilégio ter
em mãos "Terrenos Vulcânicos", um conjunto de textos inéditos do crítico alemão
Dolf Oehler, que a Cosacnaify lança com
uma bela tradução a oito mãos. É um privilégio -mesmo para pessoas que normalmente se entediam com sociocrítica.
A contracapa anuncia um "livro rebelde", "na contramão de boa parte da crítica
e da história literárias". Tanto pior para a
história literária, então, pois meia página
basta para convencer o leitor da absoluta
segurança de juízo, do conhecimento profundo e do dom incomum de síntese desse
crítico. Seu estilo sereno, límpido e elegante torna cristalinas as mais intrincadas camadas da interpretação, conciliando os comentários sociocríticos com um raro respeito pela delicadeza da arte.
Assim, a gênese da estética antiburguesa
de Baudelaire e Flaubert, de Heinrich Heine e Barbier, de Daumier e Delacroix surge
com plasticidade ímpar. Deixando intacta
a aura poética, Oehler revela as reflexões
políticas dos autores e suas estratégias para
despistar a censura ou de rebater incriminações graças ao próprio estilo, valendo-se
da feitura artística que distingue a obra no
seu valor poético.
Nem o leitor pouco otimista com a eficácia da caça aos subtextos políticos e sociológicos resistirá às sutis análises das correspondências que o imaginário de Flaubert
estabelece entre o cotidiano burguês e a
história universal na era civil-burguesa.
Desenham-se os vasos comunicantes entre
"formas de conduta, processos eróticos e
processos político-econômicos, entre neurose individual e coletiva".
Contra o consenso maciço da crítica de
esquerda, Oehler se distancia das convencionais críticas à suposta "cegueira histórica de Gustave Flaubert", desmentindo
paulatinamente a acusação da "sua neurótica falta de senso de realidade". Com tato
incomum, ele coloca limites aos desvarios
ideológicos até mesmo quando se trata de
nomes como Brecht ou Sartre: "Por mais
que saiba formular boas questões, Jean-Paul Sartre é muitas vezes um simplificador em matéria de crítica literária. É consternador vê-lo dissertar sobre o século 19
de modo ainda mais burguês que os burgueses que tanto abomina".
Por mais reticentes que sejamos, Oehler
nos atrai irresistivelmente aos segredos da
sorrateira verve que Baudelaire desempenha, por exemplo, no "Salão de 1846",
mostrando (e provando!) o elo oculto nas
aparentes incongruências da prosa baudelairiana. É preciso ser Oehler para evidenciar que os hiatos de Baudelaire criam sutis
linhas de sutura nas quais vem à luz a necessidade surpreendente do acaso.
O ministro e o assassino
Um dos
exemplos é um comentário iluminando a
nova e original concepção de heroísmo
elabora por Baudelaire a partir de duas notícias contíguas do [jornal] "Moniteur" de
janeiro de 1844. Uma fala da pronunciação
do desdém triunfal de Guizot numa turbulenta sessão da Câmara, a outra, da condenação à morte de um assassino, homem do
povo que "declarara guerra à sociedade,
sem mais hesitar antes de qualquer crueldade". As duas faces do herói moderno
-a do ministro homenageado e a do proletário condenado à morte- evidenciam
as secretas analogias entre o "espetáculo da
vida elegante" e o cenário "das milhares de
existências flutuantes nos subterrâneos da
grande cidade".
Se os jornais podem elogiar a arrogância
orgulhosa do ministro Guizot -famoso
pelo seu proverbial ditado "enrichissez-vous!" [enriquecei-vos]-, é preciso enaltecer também o sangue-frio do assassino
Poulman, de quem Baudelaire realça o
"sentido firme de dignidade moral". Como
um "grand protestant", ele denuncia que
"a sociedade mandara um inocente para o
cativeiro" -o qual reproduz a violência
com selvageria calculada, "sem hesitar antes de qualquer crueldade".
Na hábil montagem de Baudelaire, o orgulho proletário de Poulman adquire um
vulto mais impressionante que o do elegante ministro Guizot, que desafiara todas
"as cóleras exteriores", já que estas "jamais
se erguerão acima do meu desdém". O homem do povo comprova uma audácia legitimamente heróica ao prever e solicitar
que a sociedade "responda a seu grito selvagem com a ação enérgica da lei".
Teria muito a falar ainda das reservas judiciosas com que Oehler se distancia dos
parti pris ideológicos de Brecht, Benjamin
e Sartre ou das ambivalências de Heine.
Mais vale, no entanto, concluir com a análise dos sorrateiros retrocessos da imagem
da mulher, quando esta se confunde com a
alegoria da liberdade na visão de Heine, Barbier e Delacroix: "Eugène Delacroix
sintetiza, naquela figura triunfal que até
hoje parece ser a própria encarnação do
mito, os momentos contraditórios do
mito, os medos e desejos manifestamente inconciliáveis que, desde 1789,
amigos e inimigos haviam associado a
ela". Heine soube apreciar "o corpo belo, impetuoso, um rosto de perfil bravio, uma dor insolente nos traços, uma
estranha mistura de jacobina, feirante e
deusa da liberdade" e zomba dos partidários do Antigo Regime, definitivamente deixados para trás pelo resoluto
avançar da feminilidade livre.
Mas o interesse do estudo está nas finas comparações. Apesar da inquestionável superioridade, Heine teve de ceder seu lugar como poeta da revolução
a Auguste Barbier, "que ousou dar o
passo de ligar a liberdade e o prazer", ao
"postular a unidade da potência revolucionária com a sexual". "Salta aos olhos
a alegria de Barbier por ter achado um
argumento capaz de vexar também
moralmente os inimigos da liberdade:
se o distinto "libertin" difama a "Liberté",
é porque ele é efeminado demais para
uma tal mulher. Para responder à grosseria, grosseria e meia: a liberdade, sendo "puta", zomba dos eunucos."
O avesso da moda
Oehler mostra
não somente como o poema de Barbier
criou uma moda -a do exibicionismo
viril que instaura "a idéia de que são necessárias forças de jibóia para possuir a
liberdade e fazer bom papel no seu colo
gigantesco"- ; mostra também o avesso tristemente reacionário dessa ousadia aparentemente libertária e emancipatória. Pois a alegoria da liberdade
sempre veicula um discurso mais que
regressivo, verdadeiramente opressor,
sobre o papel da mulher e do erotismo.
Essa pode se chamar de liberdade, porém se molda segundo a velha imagem
masculina e judaico-cristã.
Aparentemente onipotente, ela não
passa de produto indefeso de uma atribuição de papéis: "É a primeira mentira
a revolução e, ao mesmo tempo, seu pecado original".
É simplesmente admirável o modo
como essa crítica comprometida com a
causa da emancipação (social, feminina
e humana) rastreia também todos os refluxos e retrocessos da conquista da liberdade, seus tristes contra-sensos e
suas sorrateiras perversões.
Kathrin H. Rosenfield é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de
"Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).
Terrenos Vulcânicos
224 págs., R$ 29,80
de Dolf Oehler. Trad. Samuel Titan Jr., Márcio
Suzuki, Luís Repa, José Bento Ferreira. Cosacnaify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP
01223-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3218-1444).
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