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Ponto de fuga
A carne e o mármore
Jorge Coli
No museu Guggenheim de Berlim, uma exposição: "Robert Mapplethorpe e a Tradição Clássica - Fotografias e
Gravuras Maneiristas". Pode-se argumentar: se é clássico,
não é maneirista; se é maneirista, não é clássico. O título se
refere, porém, de modo mais preciso, à "tradição clássica",
à qual o maneirismo pertence, já que ele é, por assim dizer,
sua perversão.
O problema não é tanto o de unir esses dois termos, classicismo e maneirismo. Está antes na crença de que o melhor modo para perceber a relação entre Mapplethorpe e o
classicismo é sintonizá-la com o universo maneirista.
À primeira vista, a idéia é sedutora. O maneirismo contém uma intensidade erótica pouco ortodoxa; a notoriedade imediata de Mapplethorpe vem dos escândalos provocados por suas fotografias obscenas. Aparente coincidência apenas, pois basta confrontá-las com as gravuras
flamengas ou holandesas do século 16, expostas lado a lado, para perceber a distância entre os dois universos. Mapplethorpe não busca formas retorcidas e instáveis. Suas
anatomias não apresentam o jogo inquieto de relevos sob
a epiderme, tão presentes naquelas antigas pranchas. A célebre mão, desenhada por Goltzius em 1588, serve de emblema para a mostra. Suas veias acentuadas, suas juntas
nodosas, sua crispação, definem com nitidez um conjunto
de interesses visuais sem equivalente possível nas fotografias. Porém, se as comparações propostas não convencem,
a mostra tem o mérito de indicar o caminho. Compreender em profundidade a natureza das imagens de Mapplethorpe é encontrar a substância clássica de que são feitas.
Mood - "Meu trabalho é sobre ordem. Sou um perfeccionista." "Procuro a perfeição na forma. Faço isso com retratos. Faço isso com cacetes. Faço isso com flores." Essas declarações são de Mapplethorpe. Ele poderia ter acrescentado: "Faço isso com estátuas da Antigüidade". Elas são, como os retratos, as flores e os cacetes, recorrentes em sua
obra. As fotos sadomasoquistas, os closes "pornográficos", levam muitos críticos (entre eles, os dos ensaios no
catálogo da exposição berlinense) a insistir no caráter iconoclástico dessa criação. Ao contrário, trata-se de uma
"iconia", ou de uma "icastia", já que as imagens de Mapplethorpe se mostram sólidas, inabaláveis, representando
os objetos com pureza de contornos e de superfícies, na
simplificação do preto-e-branco.
Ele parte de temas nos quais pulsam uma clara vitalidade
interior. A forma, muito controlada, se encarrega de conter, em todos os sentidos da palavra, a expansão exuberante das forças vitais. As referências a serem encontradas na
história não correspondem nem aos maneiristas nem a
Rodin, como alguns também sugerem. Elas estão em Canova e Thorvaldsen, em David, mas sobretudo Girodet,
Ingres. Ou seja, numa bela filiação neoclássica, que desdobrou seus purismos até o século 20, até o art déco. A sexualidade, assim, como todo o resto, se cristaliza, se eterniza e
purifica.
Outro assunto - Bayreuth, pequena cidade alemã da Francônia, é graciosa. Teve uma corte brilhante no século 18 e
conserva testemunhos da mais requintada cultura rococó.
É sobretudo conhecida porque lá Wagner escolheu uma
colina para construir seu teatro, lá morou e lá foi enterrado. O festival de suas óperas, todo verão, é o único lugar no
mundo em que se pode mergulhar, com tanta intensidade,
na obra de um único compositor. Tudo respira Wagner e
sua família, em Bayreuth. A casa em que morou é um museu. Neste ano, abrigou uma exposição sonora sobre os
primeiros cantores do festival.
Ecos - Por ocasião da mostra sobre os antigos intérpretes
de Wagner em Bayreuth, foi editado um álbum com 12
CDs, horas e horas de gravações com artistas que atuaram
ali, de 1876 a 1906. Mesmo se a qualidade técnica daqueles
tempos deixa a desejar, mesmo se técnica vocal e estilo podem surpreender, a emoção que esses registros transmitem permanece intacta. Entre tantos, é quase miraculoso
ouvir, na névoa dos chiados, a voz de Hermann Winkelmann, o primeiro Parsifal.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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