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Civilização escrita e falada
Nos oito textos reunidos em "Leituras e Leitores na França do Antigo Regime",
o historiador Roger Chartier identifica, já no século 18, a imbricação entre alta e baixa culturas
Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha
O pensador Paul Ricoeur escreveu
em um de seus livros mais conhecidos -"Tempo e Narrativa" [ed. Papirus]- que os historiadores, quando requisitados a pensar sobre os fundamentos teóricos que amparam a sua atividade, são tão inábeis que se
parecem com artesãos descrevendo o seu
ofício. Pode-se, sem dúvida, alegar que Ricoeur exagera e que, talvez, suas cobranças
não passem de lamúrias de um filósofo
saudoso dos tempos em que a filosofia, tida como saber fundante das outras ciências, tinha lá seus privilégios.
Teoria crítica
Pode-se, por certo, alegar isso e muito mais; no entanto, há de ter
em conta que a assertiva de Ricoeur não é
de todo caluniosa, ainda porque não são
muitos os historiadores que se dedicam a
refletir sistematicamente sobre os pressupostos teóricos que norteiam o seu trabalho -e, como bem sabemos, conscientes
ou "selvagens", tais pressupostos sempre
existem.
Ultimamente, entre aqueles historiadores de profissão que teimam em contradizer a incômoda colocação de Ricoeur, um
dos nomes mais sonantes é o do francês
Roger Chartier, cujos ensaios de matiz
conceitual têm feito grande sucesso entre
os especialistas. O leitor que quiser avaliar
em que medida e com que pertinência as
posições propostas nesses ensaios têm
norteado a atividade do historiador Chartier deve percorrer atentamente as páginas
de "Leituras e Leitores na França do Antigo Regime", obra recentemente publicada
no Brasil.
Embora os oito ensaios que compõem o
livro não tratem direta e explicitamente de
questões teóricas, os objetos que o autor aí
constrói, os problemas que pretende resolver e as nuanças que põe em relevo constituem um excelente exemplo de como a reflexão teórica apurada garante uma construção mais coesa, criativa e, sobretudo,
coerente do saber histórico.
"Leituras e Leitores", como mencionado,
é composto por oito ensaios reunidos pelo
próprio autor em 1989 e que abordam temas variados, todos referentes à cultura na
França do Antigo Regime: a relação entre
traços impostos e traços inventados nas
festas populares; as diversas construções e
os meios de propagação da idéia de "civilidade"; as variações nos ritos a serem
respeitados diante da morte; os meios de
propagação do impresso e a criação de um
público para tais artigos; a prática da leitura entre os camponeses; e, ainda, a coleção
de livros "populares" denominada Biblioteca Azul. Tal diversidade de temas e objetos, porém, se ordena a partir de duas inquietações centrais: de um lado, demonstrar a impossibilidade de traçar um limite
preciso entre cultura popular e cultura dominante e, conseqüentemente, pôr em
causa a própria idéia de cultura popular;
de outro, mostrar que, no Antigo Regime,
a "cultura tradicional" (oral e gestual) e a
cultura escrita, que começava a ganhar terreno, não são domínios tão independentes
como outrora se pensava.
Daí o historiador buscar explicitar, por
exemplo, o quão impregnados estavam os
livros "populares" da Biblioteca Azul por
histórias, temas e figuras de uma literatura
"erudita" ou o quanto as festas urbanas
misturavam, em diferentes medidas, traços impostos pela Igreja ou pelo Estado
com outros provenientes da tradição popular. Interessa-lhe, nessas e em outras
análises, suspender certos conceitos e partições quase naturalizados pela história da
cultura -e toda história é, de certo modo,
cultural, segundo Chartier-, substituindo-os não por outros, supostamente mais
maleáveis, mas sim por "descrições acuradas" dos modos de produção, circulação e
apropriação da cultura na sociedade francesa do Antigo Regime.
Um "positivismo feliz", ao gosto de Foucault? Talvez, afinal, como escreveu há
tempos Peter Burke, Chartier é o historiador da nova geração mais próximo do autor de "O Cuidado de Si". Todavia, se essa
proximidade existe, "Leituras e Leitores"
deixa claro que ela não é da ordem nem da
transposição de modelos nem da obediência a um suposto método. Dito de outro
modo, deixa claro que Chartier não "aplica" uma teoria de Foucault ou de qualquer
outro, mas vê a história (e o mundo) através das lentes de um determinado "óculo"
teórico.
Jean Marcel Carvalho França é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP).
É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro
Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).
Leituras e Leitores
na França do Antigo Regime
396 págs., R$ 42,00
de Roger Chartier. Trad. Álvaro Lorencini. Ed.
Unesp (praça da Sé, 108, São Paulo, SP, CEP
01001-900, tel. 0/xx/11/3242-7171).
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