|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
Estudo aponta que a capoeira ocupava no imaginário do Rio de Janeiro
do século 19 lugar e função semelhantes aos do narcotráfico, atualmente
A construção social da violência
Daniel Buarque
da Redação
Longe da expressão lúdica e popular que hoje representa sobretudo uma cultura e um esporte, a capoeira surgiu no Brasil do século 18 como símbolo da luta
contra a ordem policial e repressiva, marcada pela
violência e criminalidade. Para o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, 42, um dos poucos especialistas no Brasil em "cultura escrava" urbana, a capoeira era alvo da disputa de interesses que envolviam política e violência. Segundo ele, ela pode ser comparada ao crime organizado
dos dias de hoje.
Líbano Soares encontrou na capoeira a principal expressão da cultura escrava no meio urbano no século 19, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, área em que concentrou mestrado e doutorado. "Muito se sabia sobre a escravidão, mas quase todos os estudos são voltados ao
meio rural, a fazenda, o engenho, a senzala. O meu interesse era estudar a cultura do escravo na cidade, como se
construiu a identidade negra e a imagem do negro no
meio urbano", disse em entrevista ao Mais!. A pesquisa de
doutorado, "A Capoeira Escrava - E Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850)", publicada pela primeira vez em 2001, ganha agora reedição.
O que era a capoeira como fenômeno sociológico?
A capoeira é uma combinação de diversas partes africanas -não veio pronta da África-, construída na escravidão. Ela nasce como um espaço de defesa e de afirmação física do escravo no ambiente urbano mas também como forma de socialização. O grupo é que defende o indivíduo, não é uma coisa individualista.
E onde aparece a tradição rebelde da capoeira?
Na verdade, no século 19 a capoeira era uma questão
criminal, não uma questão cultural. Ela foi uma das tradições rebeldes mais diretamente conflitantes com a
ordem escravista. Ela era a única que enfrentava diariamente a repressão, tanto que a violência da repressão
do Estado colonial e imperial era maior sobre os escravos capoeiras, que chegavam a receber 300 chibatadas,
que é o mesmo que condenar à morte. Não há nenhum
crime, nenhuma prática escravista com uma punição
tão severa quanto a capoeira, porque ela possibilitava
ao escravo, mesmo que franzino, enfrentar diretamente a ordem do Estado policial.
Qual o lugar do capoeira na sociedade?
Em relação ao poder privado, aos seus donos, os escravos capoeiras tinham muito mais harmonia do que em
relação ao poder público. A capoeira era tolerada porque era praticada no espaço das ruas. Para o senhor só
interessava o que acontecia dentro de casa. E os escravos eram usados como capangas, então a capoeira não
era uma ameaça direta à escravidão, ela era uma ameaça direta à ordem pública, ao Estado.
Existe alguma relação direta entre a capoeira e os movimentos de resistência à escravidão?
Temos que pensar na capoeira como uma arma importante no espaço urbano de enfrentamento contra o Estado e entre grupos urbanos. Ela foi usada contra portugueses, contra irlandeses, mas sempre articulada
com outros movimentos. Não há indícios de uma ação
política exclusivamente da capoeira. Ela está fragmentada: grupos escravos que agem de forma espalhada na
cidade e de forma difusa. Se houvesse uma articulação,
ela possivelmente teria um papel político maior.
Em relação à resistência à escravidão, o fenômeno mais conhecido é o dos quilombos, que era estritamente rural.
Quais as diferenças entre a resistência desses quilombos e a
dos capoeiras?
O quilombo é uma forma de luta ligada à mobilidade.
Raramente o quilombo enfrenta diretamente as forças
repressoras. Já a capoeira foi criada como o enfrentamento do escravo no meio urbano. Ela se assemelha
um pouco a uma guerra de guerrilha, no labirinto da cidade. Quilombo e capoeira são formas de resistência
diferentes para diferentes tipos de escravidão, a primeira para o meio rural e, a segunda, para o meio urbano.
A que outros movimentos históricos se pode ligar a capoeira? Quem seriam os capoeiras de hoje?
A capoeira no século 19 é temida como uma espécie de
crime organizado. Havia vários tipos de crime no Rio à
época, mas, quando a polícia se refere à capoeira, se refere como aqueles que enfrentam diretamente. Grupos
que têm proteção política, impunidade, que conseguem enganar a polícia e a própria Justiça, que têm elementos da classe dominante que os protegem, que trabalham como capangas e servem a uma certa ordem política conservadora, e por isso não são presos. O
discurso contra a capoeira no século 19 se assemelha ao
discurso contra o crime organizado, o tráfico de drogas.
Um crime rendoso, com uma rede de proteção muito
grande, com pessoas da alta sociedade envolvidas, protegendo e mantendo esses grupos e por isso garantindo a
impunidade deles. Eram os políticos que contratavam os
capoeiras para se livrar de seus rivais. No imaginário da
classe média da época, a capoeira ocupava um lugar semelhante ao ocupado hoje pelo crime organizado e pelo tráfico de drogas no imaginário da mesma classe média.
Qual a relação existente entre a capoeira e a violência urbana no século 19?
Ela nasce como forma de defesa do escravo contra a
violência, mas se torna um vetor da violência urbana.
Há uma visão muito romântica, que eu combato, de
que o escravo quer a liberdade acima de tudo. Na verdade ele está dentro de uma sociedade em que a violência já existia, a capoeira reage a isso, mas também passa
a influenciar essa violência.
Havia lutas de grupos por domínios geográficos,
uma questão de poder organizado de um Estado paralelo. Cada freguesia do Rio tinha um grupo diferente.
Quando outro invadia seu espaço, era a senha para o
confronto. Havia um controle informal, uma geografia
inquieta semelhante à atual guerra das drogas. Assim
como hoje há, no Rio, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando, havia na época nagoas e guaiamus. Os nagoas dominavam a periferia, são grupos de origem africana, e os guaiamus dominavam o centro da cidade.
Eles estavam disputando espaço o tempo todo e em
confronto constante também com a polícia.
A partir de 1870, quando surgem os interesses políticos, a polícia passa a ser tolhida pelo poder político. A
política interfere na polícia, assim como acontece hoje.
E a polícia, ao invés de ser vetor da ordem, passa a ser
vetor da desordem, por conta da corrupção e dos interesses políticos envolvidos na manutenção dos capoeiras. É uma verdadeira luta por espaço, pelo espaço da
economia urbana. O escravo era trabalhador, e a capoeira é importante na afirmação desse trabalhador urbano, ao contrário da visão preconceituosa que chamava os capoeiras de preguiçosos.
E o que é a capoeira hoje em dia?
Ela ainda é uma manifestação violenta, mas apenas episódica e residual. No século 20, por meio dos mestres
Bimba e Pastinha, surge a capoeira baiana, que era quase inexistente durante o século 19. Ela agora é transformada num evento cultural e esportivo, saindo do mundo do crime, se transformando um evento lúdico, popular. É como falar, hoje, que no século 22 o tráfico pode ser tratado como cultura. Dizer, hoje, que o tráfico é
cultura é de espantar; o mesmo espanto era causado ao
chamar a capoeira de cultura no século 19.
A Capoeira Escrava
610 págs., R$ 55,00
de Carlos Eugênio Líbano Soares. Ed. Unicamp (caixa postal
6.074, r. Caio Prado, 50, Cidade Universitária, CEP 13083-892,
Campinas, SP, tel. 0/xx/19/ 3788-7235).
Texto Anterior: Contos cruéis Próximo Texto: Civilização escrita e falada Índice
|