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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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LEIA A SEGUIR QUATRO ARTIGOS DE UMA ENCICLOPÉDIA FICTÍCIA QUE "ANTECIPAM" A SITUAÇÃO GEOPOLÍTICA DOS CONTINENTES DAQUI A 20 ANOS


ÁFRICA

por Luiz Felipe de Alencastro


Por volta de 2010, a Aids já reduzia pela metade o tempo de esperança de vida na África do Sul, em Ruanda, no Zimbábue e em Botsuana; nos países mais infectados, a queda do Produto Nacional Bruto causada pela doença atinge 20% em 2023


A evolução da África se desenrola em dois tempos distintos. Por um lado, corre a história multissecular da África mediterrânica. Do Egito ptolemaico à Argélia de santo Agostinho, essa região se incorpora às grandes etapas do passado ocidental. Em 2023, mais integrado à União Européia, o norte da África continua seguindo uma via diferente daquela que foi trilhada pelo resto do continente. O medo de imigrantes norte-africanos clandestinos nas praias do Mediterrâneo e o avanço de outras potências no golfo Pérsico fazem a Europa investir na estabilidade dos países produtores de petróleo da África do Norte. Por outro lado, aparece a África subsaariana, cuja evolução sofre, desde o século 15, o impacto do grande comércio atlântico e do tráfico negreiro. Na realidade, o trato de escravos já existia nessa parte do mundo. Assim, as redes do Saara e do "corno" da África (zona extremo-oriental banhada pelo Oceano Índico) transportaram cerca de 8 milhões de escravos negros para o Mediterrâneo e a Arábia entre os séculos 8º e 19.

O peso da pilhagem
Mais intensas, as preações africanas e européias conduziram ao desembarque de cerca de 10,2 milhões de escravos negros nas ilhas atlânticas e nas Américas entre os séculos 16 e 19. O peso da pilhagem da África e a importância dos africanos na construção das nações americanas são consideráveis. Até os anos 1840, a média anual dos escravos africanos deportados para o continente americano superava a média dos desembarques de imigrantes livres europeus. Somente nos anos 1880 o número acumulado de europeus passou a ser maior do que a soma dos africanos introduzidos no Novo Mundo. Na mesma época, realizou-se a Conferência de Berlim (1885), em que as potências européias delimitaram, do litoral para o interior, suas respectivas zonas de domínio na África. Vem daí o perfil esdrúxulo dos limites que separam os atuais países africanos: 75% das fronteiras baseiam-se em meridianos, paralelos e linhas geométricas, enquanto apenas 25% resultam do relevo físico regional e, mais raramente, do povoamento nativo. Nenhum outro continente possui tantas fronteiras artificiais. Dividindo as macrorregiões que moldaram as grandes civilizações de criadores e agricultores africanos, tais fronteiras se apresentam como bombas de retardamento enterradas no território das nações tornadas independentes na segunda metade do século 20. A Organização da Unidade Africana, que congrega os países do continente, decidiu consagrar a intangibilidade das fronteiras africanas, evitando abrir litígios diplomáticos e militares por todo o continente (1963). Mas o problema continuou de pé. Como assinalavam os especialistas, as fronteiras nacionais são instáveis em razão das comunidades homogêneas que elas separam e, sobretudo, por causa das comunidades heterogêneas que elas reúnem num mesmo território. Instituições estatais precárias, ditadores e governos corruptos, mantidos numa situação neocolonial pelas grandes potências, foram duramente abalados pela redefinição dos interesses internacionais depois do fim da URSS (1991). Ao lado dos conflitos interétnicos e religiosos, alguns Estados ou movimentos autonomistas, armados por fabricantes e traficantes de armas interessados no comércio de petróleo, diamantes e outras riquezas minerais, desencadearam conflitos que tinham um custo anual de US$ 15 bilhões em 2003. Nessa altura, num conjunto de 46 países africanos, 23 estavam mergulhados numa situação de catástrofe humanitária, com 9 milhões de refugiados e 35 milhões de pessoas deslocadas pelas diferentes guerras. Como escreveu um especialista francês, "a guerra é uma alternativa a uma economia de paz que faliu: [o fuzil" Kalachnikov é o melhor meio de produção". Um novo patamar foi ultrapassado no início da guerra civil na República Democrática do Congo (1998). Envolvendo cinco países da região, o conflito passou a ser conhecido como a "primeira guerra mundial africana".

População urbana
Por esse e outros motivos, as migrações entre os diferentes países do continente se tornaram as mais importantes do planeta. Ao mesmo tempo, acelerou-se o movimento de urbanização -em 2023 mais de 50% da população africana vive nas cidades. O perfil demográfico da África subsaariana também revela outras características: em 2023, a porcentagem regional de indivíduos entre 15 e 29 anos passa a ser a mais elevada do mundo. Os grandes problemas da América Latina contemporânea aparecem de forma exacerbada no continente africano. Lagos, ex-capital da Nigéria e maior metrópole africana desde o final do século 20, serve de demonstração radical dos problemas urbanos africanos do presente e do futuro. Lagos é a antiga Onim, porto marítimo integrado ao grande comércio atlântico em meados do século 18 pelo ex-escravo e negreiro baiano João de Oliveira. Apresentando-se como uma das maiores cidades do planeta em 2023, Lagos é a campeã dos índices utilizados pela CIA para medir as crises nas metrópoles nas próximas décadas. Refugiados das guerras civis, rivalidades étnicas e religiosas de permeio aos 250 grupos étnicos nigerianos, altas taxas de desemprego, inexistência de serviços públicos e desgoverno político podem fazer com que essa área urbana se transforme no maior favelão da humanidade. É nesse contexto que a epidemia de Aids que assola o continente toma sua dimensão. Com exceção de Uganda, que implementou um programa vigoroso de combate à epidemia, e do Senegal, a Aids invadiu a África subsaariana. Desde 1998 a doença aparece como a principal causa de mortalidade no continente. Por volta de 2010, a Aids já reduzia pela metade o tempo de esperança de vida na África do Sul, em Ruanda, no Zimbábue e em Botsuana. Embora os efeitos sociais e macroeconômicos não possam ser inteiramente avaliados, é certo que os países da África Central e África Austral têm seu futuro hipotecado pela Aids. Nos países mais infectados, a queda do PNB [Produto Nacional Bruto" causada pela Aids atinge 20% em 2023.

Petróleo
Depois do começo da guerra civil na Costa do Marfim (2002), inviabilizando o crescimento econômico de uma das mais promissoras regiões africanas, a África aparece como o único continente que não dispõe de um setor industrializado avançado. A indústria petrolífera é um dos raros setores econômicos continentais que continuam se desenvolvendo.
Em 2023 a África subsaariana ultrapassa o golfo Pérsico como maior exportador de petróleo, fornecendo um quarto do petróleo consumido pela América do Norte. Para os Estados Unidos a região se torna crucial, visto que uma das principais consequências da Segunda Guerra do Golfo (2003) foi, com o aumento do antiamericanismo, o crescimento do comércio e da influência da Índia e da China junto dos países produtores de petróleo no golfo Pérsico.
Nesse período, Angola registra o maior acréscimo de produção na região, passando de 722 mil barris diários em 2001 para 3,1 milhões em 2020. Desde logo, o país aparece como o segundo maior produtor africano, na frente da Líbia e do Egito e atrás somente da Nigéria. Atraídos pelo potencial das riquezas angolanas, empresas multinacionais brasileiras, seguindo a rota da Odebrecht, disputam com grupos europeus e norte-americanos os contratos estatais de construção civil, campos de petróleo e jazidas de diamante.
Em 2023, o Brasil, cuja população é majoritariamente negra e mulata, volta a ter, como nos séculos 17 e 18, seu destino ligado a Angola e ao Atlântico Sul.

Luiz Felipe de Alencastro é professor de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras).


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